Scripto ergo sum!

Uma vez que ontem foi dia de super lua rosa (a super lua rosa deve-se a perigeus mais curtos), hoje, tendo presente o quanto (muito e muito) se sabe sobre o cérebro nos tempos que correm, hoje é o dia azado para desvendar o quão interessante é o cariz do ofício da escrita, de um tipo de escrita que permite ser diferente e igual a si próprio. Quase dia sim dia sim (e ao longo já de vários anos) tenho tentado escrever, preferencialmente em forma de diálogocom um meu avatar (a minha consciência: umas vezes consciência crítica, outras vezes fada-consciência-fada) na procura da verdade humana; para tal ser possível, é necessário que eu tente ser outra pessoa. Ser outra pessoa é perder a própria visão subjectiva, mas mantendo como certo que a vida nasceu e evoluiu sem palavras, que a vida evoluiu graças a uma inteligência oculta, promotora da sobrevivência e da criação de memórias representadas. Sendo assim, pensar em escrever pressupõe, desde logo, um representar, pressupõe um mundo de imagens (imagens são as representações que constituem a nossa mente e que são produzidas pelos canais sensoriais em contacto com a realidade); num representar é a imaginação a tomar a dianteira: devo manter à vez o meu ponto de vista e o ponto de vista de outra pessoa, para saber em que me diferencio dela, seja, para escrever um diálogo, tenho comigo, sinto em mim alguém-pessoa especial. Daí que, antes de se começar a escrever, seja imperativo sentir (a forma mais simples de sentir surge nos organismos vivos e tem o nome de afectos (alô Espinosa!), e seja imperativo saber que é mesmo na metáfora que se aninham as formas simples: tenho, pois, que ter presente, em profunda cumplicidade, o corpo, o rosto (sem máscara) e os olhos e as pálpebras sonhadoras e as mãos e os gestos e os sentimentos e os tiques (e os truques) desse alguém-pessoa, alguém-pessoa altivo qual esguia árvore, alguém-pessoa que se constitui um espelho de mim e que influencia as minhas palavras (quanto mais perto olho uma palavra, tanto mais de longe ela olha para mim, disse Kraus), e ainda e também as minhas diversas expressões corporais. Finalmente, para iniciar a caminhada na escrita, é mesmo necessário saber quem são os seres humanos e como a meditação e a consciência são muito importantes, que sem consciência nada se pode saber. Adiante sem mais delongas, mas com a certeza de que os seres humanos não são a espécie mais inteligente do planeta Terra. Eu escrevo devagar (e até de corrida), em voltas e voltas e rodopios e desviando-me (na medida do possível) das escarpas e das escórias da mediocridade, escrevo como quem caminha no labirinto de regresso à linguagem, e recorro à memória, à imaginação e à metáfora sempre que preciso de descansar, a burilada escrita transforma-se então numa espécie de cortina: creio ouvir o que esse alguém-pessoa crê, os nossos pensamentos nossos pensamentos são, e as vivências mais não são que deixas, sorrio bastas vezes, zango-me de quando em vez, sofro muito, falo sem rodeios, sinto-me bem (alegre ou triste ou assim assim), há dias até em que fico sem jeito, é então que se torna perceptível o encanto. Registe-se para memória futura que, sem o pensar, me encontro (quando escrevo) em sintonia com o corpo e a mente e os olhos e as expressões e a voz (e as suas inflexões bem ou mal humoradas) desse alguém-pessoa - que a vida escolheu e que me me ofertou em senciência - e empatizo com os significados das palavras que circulam - soltas e leves e divertidas e musicais - nos nossos diálogos quotidianos (um dia hei-de saber onde começam as palavras, é prova provada que o sussurro se comporta com as palavras como o sorriso se comporta com as anedotas...): assim sei que sou outra pessoa, que represento, que sinto; sei e represento e sinto a outra pessoa-mensageira de um humanismo mais real; e, ao mesmo tempo, sinto que saber que não perco toda a percepção de mim mesmo constitui não só o sabor inconfundível da beleza da vida gratuita e efémera quanto o jeito de entoar um hino na presença de Deus Criador. Concluo, dizendo que, para melhor tirar partido do ofício da escrita, é imprescindível estar na escrita de forma corporificada (forma que é um híbrido de espírito e sexo): permanecendo em experiências vividas acolitadas da mente de um principiante, mandando às malvas as distrações cognitivas e escrevendo como quem desenha sésamos musicais num caderninho preto argolado. E é aí, nesse mui esbelto caderninho preto argolado, que se demora uma bússola moral da complexidade cuja utilidade ainda está ainda por descobrir; e é também aí que se esconde e se oculta e se mostra (e onde viaja clandestina) uma máxima harmoniosa e inteligente e criativa e poética, ela é uma máxima-mensageira alada - "como o angelus - o mensageiro que vemos nas gravuras antigas", diria Walter Benjamin - , estascripto ergo sum!.

Adenda
Isto nunca poderá ser esquecido, oxalá nunca se esqueça!

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