O separar o fazer e o ter do Ser ou O despertar de um mundo novo















Que imagem maravilhosa, que ratinho catita, inteligente e orelhudo!, que lhe parece? Vidrado, vidrado é o termo adequado, fiquei vidrado quando olhei a imagem que a minha consciência me mostrava, não é possível, disse de mim para comigo. E ela: sei das suas preocupações sobre o pensamento complexo, e não é que uns neurocientistas perspicazes (aqui) chegaram à conclusão que também os ratos (tal qual os seres humanos) combinam dados sensoriais com memórias arquivadas no cérebro para construir o seu mundo, seja, dominam a abstração e o pensamento complexo? Tenha dó, peço-lhe, imploro, estou confuso, que hei-de eu dizer? Ora essa, retorquiu ela, leia o estudo, pense um pouco e quando quiser, e se quiser, fale comigo. Assim farei, tenha um dia muito bom. Ups, alto aí e pára o baile, ciciou ela, troquemos algumas impressões sobre o Ser. Sobre o Ser?, não!, disparei, pior a emenda que o soneto, estou em dia de poucas falas e falar do Ser não é fácil, desde logo porque o Ser mora na linguagem e a linguagem para o descrever é um bicho de sete cabeças e ter experiência do que seja peculiaridade do Ser é obra complicada, dado que é necessário embarcar numa viagem interior rumo a algo supra sensorial, algo contemplativo. Olálá, trauteou refinada na arte do dizer, gosto do seu remoque atrevido, confirma que tem aprendido muito comigo, gosto!, as mentes dos dois hemisférios do seu cérebro parecem estar sincronizadas, mas o seu hemisfério esquerdo (o intérprete) chegou-se à frente e quis arrumar esta sua conversa comigo, vem de carrinho, ainda tenho algo importante a anunciar. Vamos a isso, desafiei curioso. Registe, disse ela pausadamente, registe que, na vida, os vazios de ser (livre e feliz) não se podem preencher com fazer ou com com ter, que interessa ter isto ou aquilo se não se é livre e feliz? Que fazer então, que caminho percorrer?, perguntei. No caminho para o Ser há que deixar para trás o fazer e o ter e há que, com os olhos da memória, entrar em contaco com o silêncio e com a quietude mental (é nesse lugar que emergem as mais profundas intuições), oh azul do céu, redonda imensidão!, sussurrou ela mui empertigada. Bem que ainda lhe pergunte, interrompi, a prática de contemplação é muito pouco utilitária, pois não é? É nada utilitária mas muito útil, respondeu num sorrisinho maroto, e acrescentou que quando o cérebro renuncia ao fazer e ao ter acontece algo misterioso e assombroso, e frisou que nesse instante as duas mentes (a do hemisfério esquerdo e a do hemisfério direito) se sincronizam. E daí? Atrevi-me. Daí que, reagiu em voz quase tímida, daí que nesse instante, resetadas as duas mentes, aconteça um despertar, aconteça um despertar que muitos dizem ser a consciência unificada, águas de mim são a sua consciência unificada. O quê?!, suspirei estonteado e arregalando os olhos, ela é a minha consciência unificada, será? Às tantas é, respondi, a verdade, verdadinha é que quando me aparece, faz-se luz e eu fico com a sensação de ter vivido toda a minha vida encerrado numa caverna, a sua presença em mim é o Da-sein do Heidegger. Gosto desse seu pensamento, ouvi-a cantarolar, sou eu que lhe permito recuperar a sua liberdade criativa, sou eu que o levo a deixar de ligar ao fazer e ao ter e a começar a reconhecer-se na luz do Ser. Belisquei-me, e suspirei: estou sem fala! Naquele instante (pode lá ser!) senti no ar um cheiro forte de resina de estevas, pinhos e giestas à mistura com um sem-número de ervas, musgos, plantas, árvores e arbustos. Que mais me irá acontecer? Vida!

Comentários

  1. Caro Amigo não tenho saber bastante para comentar, mas, apesar disso espero que a colectânea seja dada ao prelo para me deliciar, porque tem uma rara beleza.
    Muito obrigado

    ResponderEliminar

Enviar um comentário

Mensagens populares