Anos de vida: emoção aos três, magia aos sete!


Decidi acordá-lo, às três horas da manhã, porque ando intranquila, sinto a lua no meu corpo e chove tanto (se continuar a chover e amanhecer com sol, as bruxas vão fazer pão mole, sabia?)! - Ouvi a minha fada preferida dizer de mansinho, em jeito de quem chega melodia. E ando intranquila porque, continuou, para o bem e para o mal, tudo o que tem a ver com a minha vida, tem a ver com a minha infância, onde sempre brinquei de realidade com frequências de imaginação. Tudo bem! - Respondi um pouco enfadado e com os olhos ainda por acordar. Ao mesmo tempo, perguntei-lhe se não lhe parecia que ter decidido acordar-me manhã tão cedo, não era um abuso desnecessário. Nem é abuso, nem é desnecessário, interrompeu-me de supetão, afirmando: não é abuso porque eu vivo no seu cérebro e sou a sua razão de ser; e não é mesmo desnecessário porque a minha presença o alivia imenso, é óbvio. Mas vamos ao que interessa, oiça-me com atenção... Lembro-me muito bem que J. Gil de Biedma, um poeta e meu excelente amigo de longa data (ponha de lado, soprou-me, essa sua cara de ciúme mal enjorcado!), quis tomar um café comigo para me tentar convencer que, a partir dos doze anos de idade, já nada nos acontece de importante. Eu, na altura, recusei o café porque achei que era perder tempo e porque desconfiava sempre quando ele, andando de asa caída, me dizia que eu tinha talento para concertar tudo o que tocava. Hoje estou intranquila porque creio que ele tinha alguma razão e penso que apenas se enganou quando disse doze anos de idade. Das duas, uma, ouvi-me dizer, medindo as palavras: ou aquilo que eu sei da sua vida não corresponde à verdade ou estou a ficar surdo e não percebi nada do que disse. Será que a sua vida de menina adulta não tem nada de importante? Usando os olhos para iluminar a resposta, num sorriso enigmático, respondeu que não negava que na sua vida adulta se passaram e aconteceram coisas importantes e fundamentais; mas que, insistiu, a intensidade com que as viveu, não podia comparar-se às experiências que viveu antes dos seus dez anos e, especialmente, as experiências que viveu aos três anos e aos sete anos de idade; idades em que a emoção (aos três anos) e a magia (aos sete anos) passaram a fazer parte da vida dela, dado que, nesses anos, terá iniciado a construção das belas texturas da sua estória pessoal. Não se importa, pedi-lhe, de me explicar um pouco melhor porque é que faz coincidir a emoção com os três anos e a magia com os sete anos? Ora aí está uma questão muito inteligente e perpicaz! - Exclamou, rindo-se e dizendo com dois pedaços de timidez na concha das suas mãos meninas: aos três anos, num aeroporto, absolutamente descontraída (gosto de lembrar as minha aventuras inocentes desse tempo), aprendi as emoções de ser fronteiriça; e aos sete anos, na escola, senti-me mulher quando entendi o funcionamento biológico do corpo humano (tenho, desde essa data, um pacto fortíssimo com a lua). Gostaria que não ficasse aborrecida e nem se amofinasse, interrompi, mas parece-me que o que acaba de dizer mais parece ler memórias apagadas. Bem observado, meu caro! - Estou deveras admirada e surpreendida consigo, sussurrou. Sugiro-lhe que pense no significado da memória. A natureza inventou mecanismos para armazenar a memória mais que uma vez (várias vezes) no cérebro. Ora oiça: a sua memória dos acontecimentos do dia é consolidada por uma zona do cérebro designada de hipocampo; mas memórias de outras situações da sua vida são consolidadas na amígdala (são memórias difíceis de apagar e podem ressurgir do nada). Como eu, sendo fada, sou uma incessante reinvenção, devo fazer uso regular mas assíncrono (percebeu agora o significado de o ter acordado, com carícias, às três horas da manhã?) das rivalidades das memórias... Por esta razão é que a ternura brota em mim, sem cerimónias, quando decido encher-me de silêncios e celebrar a alegria num dia de sábado-fim-de-tarde. Que vaidosa e que convencida! - Pensei, eu e mim.

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