Casa Pia de Lisboa: carta de Pina Manique (26 de Junho de 1799)
Polémicas
à parte, hoje é dia em que se comemora a fundação da Casa Pia de
Lisboa (em 03 de Julho de 1780). A imagem é a alegoria a essa
fundação (uma pintura de Domingos Sequeira, que alguns garantem ter sido bolseiro da Casa Pia em Roma). Muito se tem dito (e especulado) a propósito da fundação da Casa Pia de Lisboa: eu (a título de exemplo) penso isto e divulguei isto e publiquei isto e isto. Hoje, depois de já ter lido tanta parvoíce e tanta asneira sobre a Casa Pia de Lisboa, opto por divulgar uma carta de Pina Manique, datada de 26 de Junho de 1799 (retirada de uma obra de Simão Luz Soriano, também ele um aluno da Casa Pia do Desterro). Trata-se de uma carta com importância fundamental, seja: quando foi escrita, já a Casa Pia de Lisboa existia há 19 anos; e mais: em Portugal, nessa data, viviam-se momentos muito conturbados por causa dos acontecimentos revolucionários em França.
Sem mais comentários, e para bons entendedores, eis o texto da carta:
"Il.mo
e ex.mo Sr.
Marquês mordomo-mor
Como
desejo ter por escrito a aprovação de Sua Majestade para de futuro
se conhecer que a Casa Pia foi estabelecida e mandada erigida pela
mesma senhora, que repetidas vezes a honrou, indo a ela com o senhor
rei D. Pedro, o príncipe que Deus guarde e toda a família real e
com os seus ministros de Estado e uma parte da corte e nela viram e
ocularmente examinaram este estabelecimento, o que V. Ex.ª também
presenciou, seja-me agora lícito para aquele fim fazer aqui uma
enumeração, não só dos diferentes ramos que a Casa Pia em si
mesma contém, mas de outros objectos e diligências que Sua
Majestade aprovou e V. Ex.ª tem presenciado.
1.º:
há na Casa Pia mestres que ensinam as artes, como são as de fazer
lonas, brins, cabos de laborar, tecidos de algodão e seda, meias,
panos de linho e fiações para todas as manufacturas.
2.º:
tem casas de correcção para um e outro sexo.
3.º:
casas para onde passam aqueles que estão corrigidos e vão nelas
aprender as obrigações de católicos romanos, as civis e a
obediência cega, que devem ter aos príncipes, que felizmente nos
governam.
4.º:
duas casas onde estão aqueles órfãos de um e outro sexo, que tendo
pelo seu respectivo juízo postos a servir, se desacomodaram
figitivamente. Ali recebem aquelas mesmas instruções para tornarem
pelo mesmo juízo a seguir o seu destino. Por meio das ditas
instruções e desta pequena correcção procura-se que eles melhorem
de costumes, uns para bem servirem, outros para aprenderem com
desvelo os ofícios a que se propõe.
5.º:
uma casa com o título Santa Isabel, rainha de Portugal: nela estão
as órfãs de tenra idade e as filhas ainda inocentes de mulheres
desgraçadas.
6.º:
uma casa com a denominação de Santo António. Recolhem-se nela
órfãos de tenra idade para aprenderem as primeiras letras.
7.º:
Colégio de São José. Há nele os órfãos que pela sua tenra idade
não podem estar na casa de educação e por aquele mesmo motivo são
servidos por mulheres.
8.º:
o colégio onde se ensina a língua alemã e a escrituração
mercantil.
9.º:
o colégio denominado de São Lucas. Os alunos dele dedicam-se às
ciências e frequentam as aulas de farmácia, desenho, gramática
latina, anatomia especulativa (a prática vão aprendê-la ao
Hospital de são José), das línguas vivas a inglesa e a francesa e
princípios de navegação. Uns dos alunos seguem a Academia da
Marinha e outros a Aula de Comércio. Vão uns praticar ao hospital,
outros aprender filosofia e língua grega com professores régios.
10.º:
há uma aula de partos: concorrem a ela alguns cirurgiões e em hora
encontrada as parteiras. Uns e outros são especulativamente
instruídos sobre as regras gerais com instrumentos e modelos que
mandei vir de Inglaterra e Dinamarca, onde a arte obstétrica tem
chegado à maior perfeição. Têm-se particularmente feito algumas
operações: o mestre ou professor, quando para elas é convocado,
vai com alguns discípulos de um e outro sexo, que por alternativa o
acompanham.
11.º:
o colégio de belas artes, que permaneceu em Roma até ao dia em que
os Franceses nela entraram, por cujo motivo os alunos, cujos notáveis
progressos são presentes a Sua Majestade e a V. Ex.ª passaram para
Florença donde há pouco tempo chegaram a esta capital.
12.º:
o colégio que também houve na Dinamarca, para aprender a arte
obstétrica: do merecimento dos seus alunos pode V. Ex.ª (consultar)
o conselheiro de Estado, D. Alexandre de Sousa Holstein.
13.º:
outro colégio de medicina cirúrgica em arte obstétrica em
Edimburgo e Londres: tem dele saído vários alunos que se distinguem
nas ditas artes, servindo neste reino os vassalos de Sua Majestade:
dois deles são mestres na Casa Pia.
14.º:
três alunos do colégio que houve em Roma estão actualmente
aperfeiçoando-se para virem a ser uns hábeis incisores e abridores
de cunhos.
15.º:
uma academia do nu, a que concorrem muitos dos professores que há
nesta corte e alguns alunos da Casa Pia. Para comodidade dos que
diariamente a frequentam está esta academia estabelecida nas casas
contíguas a São Camilo de Lelis.
16.º:
um colégio em Coimbra para ciências naturais. Há nele actualmente
sessenta e dois alunos, que pela maior parte de distinguem. Têm-se
formado e alguns doutorado em Matemática, Filosofia e Medicina.
17.º:
outro colégio em Coimbra, para os religiosos da Ordem de são João
de Deus, que têm por instituto ser hospitaleiros, por cuja razão,
sendo alguns daqueles professores de Medicina e Cirurgia,
desempenharão melhor a sua obrigação: além disto pode Sua
Majestade ter hábeis professores, que mande não só para bordo das
embarcações de guerra, a fim de socorrer miseráveis doentes
(objecto este digno da maior atenção em benefício dos leias
vassalos da mesma senhora), mas também para algumas colónias que
deles necessitam. Com eles pode igualmente a polícia socorrer
algumas vilas do reino, quando lho pedirem, o que muitas vezes tem
acontecido e ainda mesmo às pessoas que nesta capital vivem sobre
si, como, por exemplo, as que a ela vêm das colónias deste reino e
que, adoecendo, não têm quem deles trate, nem estão nas
circunstâncias de precisarem dos hospitais. Estes professores, como
não têm distracções, serão assíduos nas enfermarias, repetirão
as suas conferências e, unindo à especulação a experiência,
farão admiráveis progressos em benefício da humanidade.
18.º:
tem a Casa Pia em diversos anos mandado assistir a várias epidemias
que grassaram, como na Ericeira, Ponte de Rol, Runa, Montelavar,
Carnaxide, freguesia dos Olivais em Valejos, nos termos de Alenquer,
Vila Franca, Cascais, Oeiras, Peniche, Atouguia, mandando professores
e socorros de botica, alimentos e roupa aos miseráveis que deles
careciam.
19.º:
tem
a intendência da Polícia feito na Casa Pia públicas demonstrações
de alegria e regozijo, como também nesta corte, pelas melhoras na
moléstia em que foi atacado o príncipe nosso senhor, pelos
nascimentos da Sereníssima princesa D. Maria Teresa e do príncipe
da Beira. Estas demonstrações fizeram-se quando em Paris começou a
brotar a impiedade, juntamente com a sedição, para deste modo fazer
públicos o contentamento e a satisfação que temos em gozar de uma
soberana a mais amável e em aplaudir os seus felizes anos,
convidando para a Casa Pia a corte eclesiástica e secular, os
regulares e os párocos e em diversos dias a Casa dos Vinte e Quatro
com as suas respectivas bandeiras, para ministrarem o jantar aos
pobres, a cuja mesa num dos anos também V. Ex.ª serviu
edificantemente, com uma parte da corte, assim secular como
eclesiástica, e com vários ministros. Foram servidos 4220 pobres de
um e outro sexo, a cada um dos quais o Exmo e revd.mo arcebispo de
Lacedemónia, D. António Caetano Maciel, à saída distribuiu a
esmola de 200 réis, para
dar assim na Europa um testemunho da lealdade dos Portugueses para
com os seus príncipes e desanimar aqueles que estivessem no iníquo
projecto de vir contaminar os povos. Sempre estas demonstrações,
que em diversos anos se repetiram, começaram pela missa do
pontifical com Te
Deum,
reunindo com tudo isto as esmolas que aos párocos desta corte se
deram para distribuírem pelos pobres das respectivas paróquias e
proporcionando sempre as mesmas esmolas, segundo o número de fogos
de que cada uma delas se compõe. Além disto naquele ano tiraram-se
por escrutínio ou sorte quarenta dotes de 60$000 réis cada um em
benefício das órfãs da Casa Pia.
20.º:
os colégios da Casa Pia, acompanhados de diversos religiosos dos
conventos mendicantes do reino, foram como em procissão aos
hospitais dos incuráveis e de São Lázaro, às cadeias do castelo,
cidade, corte, Belém e aos calabouços dos regimentos que guarnecem
esta corte naqueles mesmos dias em que na Casa Pia se faziam as
referidas demonstrações e ministraram os jantar às pessoas ali
recolhidas e deram a cada indivíduo 100 réis em dinheiro,
distinguindo entre estes com maior esmola os incuráveis lazarentos e
os soldados. Pelas ruas iam entoando hinos a Deus Nosso Senhor,
seguidos de imenso povo espectador de uma acção tão religiosa como
edificante. A todos os conventos de religiosos mendicantes desta
corte e seu termo, tanto de um como de outro sexo, mandou a Casa Pia
uma esmola pecuniária, à proporção dos religiosos que neles
havia.
21.º:
faz
a mesma Casa Pia despesas diárias com os pobres desta capital,
dando-lhes gratuitos os remédios, logo que apresentem atestação
dos seus párocos e fazem constar a sua indigência, ou pelo médico
assistente, ou pelo ministro do respectivo bairro, como também
àqueles que por viverem honestamente merecem esta contemplação, o
sustento e os vestuário. Além disso, dão-se diária e actualmente
510 rações a pessoas que, tendo servido a Sua Majestade e ao Estado
estão inabilitadas para poderem ganhar com que se mantenham e por
isso mesmo a muitas destas a Casa Pia até cobre a nudez e de seus
filhos. Socorre também os doentes com a assistência dos
professores, que de partido têm para este fim.
22.º:
para comodamente fazerem a sua passagem, tem a polícia municiado
muitos indivíduos, que nestes últimos tempos tem mandado sair deste
reino, ou sobre embarcações para portos estrangeiros, ou em levas
para serem entregues na raia do reino de Espanha.
23.º:
aos oficiais que de alguma província frequentemente conduzem para as
cadeias desta corte levas de presos, com cujo sustento dependem, tem
a polícia mandado dar ajudas de custo em atenção a que algumas
câmaras não podem suprir estas despesas e feito despesas em outras
diligências particulares, que se encaminham à tranquilidade
pública, o que tenho posto na presença do príncipe nosso senhor e
de V. Ex.ª.
24.º:
fiz alargar a estrada que vai de Sacavém para Alverca e plantar
pelos lados dela estacas de oliveira. Mandei continuar esta mesma
plantação nas estradas da maior parte do termo desta corte: o
número de estacas que se têm plantado já monta a 40 000 para
comodidades dos viandantes e para que o fruto que produzirem fique
pertencendo à Casa Pia e à iluminação da cidade.
25.º:
nos baldios da câmara da vila de Abrantes fiz semear pinhão do
pinhal de Leiria e medrou tanto esta útil sementeira que já se têm
cortado e actualmente cortam para várias obras do serviço de Sua
Majestade e por isso mesmo a tenho mandado continuar nos zimbrais da
vila de Peniche e Atouguia.
26.º:
mandei vir de Inglaterra 600$000 réis de batata, que espalhei
gratuitamente pelas povoações do Ribatejo; nalgumas terras tem sido
prodigiosa a sua produção e principalmente na vila da Moita, onde o
dízimo que delas se paga já monta a 240$000 réis.
27.º:
de Petersburgo mandei vir semente de linho-cânhamo, que
distribuí por todas as capitanias das nossas colónias e também
pelo Ribatejo. De Vilariça, termo da vila de Moncorvo, igualmente a
mandei vir para o referido fim.
28.º:
na Rua Direita dos Anjos tenho dado princípio aos aquedutos que
devem receber as águas que vêm da estrada da Charneca, Sacavém,
Campo Pequeno, Penha de França e que na dita rua se juntam em tanta
quantidade que fazem difíceis a administração dos sacramentos e a
passagem dos viandantes. Tenho projectado formar ali uma espécie de
praça e colocar nela o chafariz, denominado dos Anjos, para serviço
público.
29.º:
mandei fazer as grandes estradas, que do alto da Porcalhota se
dirigem até à porta de ferro da real quinta de Queluz e daqui para
Nossa Senhora da Ajuda. Constríram-se pontes, descoroaram-se e
demoliram-se montes, moveram-se terras para altear alguns sítios
baixos, fizeram-se muralhas para sustentar o peso das mesmas terras e
guarneceram-se de árvores silvestres e arbustos as estradas desde
Palhavã até Queluz, para comodidade e recreio de Sua Majestade e
altezas, como também das pessoas que as frequentam.
Para
não roubar a V. Ex.ª o tempo que nos é precioso, devo omitir
outras despesas que por esta minha repartição se têm feito, como
em municiar prisioneiros, assim franceses como espanhóis, para serem
entregues na raia de Espanha, em vestir não só alguns daqueles, mas
também a muitos dos recrutados em sustentar e curar uma grande parte
destes na Casa Pia enquanto
não se ponham prontos e capazes para poderem entrar no serviço e no
mais que deixo à sublime compreensão de V. Ex.ª, que muito bem
conhece quais são as obrigações a que está adstrito o lugar de
intendente-geral da Polícia e
muito mais numa época como a que tem decorrido desde 1788 até
agora, sendo indispensável fazer despesas para conservar e manter a
tranquilidade pública (além daquelas a que V. Ex.ª tenho referido,
já com espiões e já com ganhar pessoas para descobrirem algumas
associações secretas, como foram, além desta última dos
pedreiros-livres, a de Origini, Francisco Gil Angeró, Fontaine, Noel
Cagliostro e outros muitos, havendo então descoberto três lojas de
pedreiros-livres, filiais da grande loja de Paris, de que era
grão-mestre o duque de Orleães). Portanto desejo que Sua Majestade
aprove todas estas despesas por escrito, assim como já fez
verbalmente a honra de aprovar, para que de futuro não venha eu ou
os meus herdeiros a sofrer algumas incomodidades ou perigue a minha
memória.
Rogo
a V. Ex.ª que ponha o referido na presença de Sua Majestade,
esperando merecer à mesma senhora esta graça que lhe suplico.
Lisboa
em 26 de Junho de 1799.
Diogo
Inácio de Pina Manique
Adenda
Há quem (corajosamente) faça elogios ao anacronismo em história (anacronismo é o pecado capital na história, gritam alguns: muitos, quase todos). Porém, quando se lê toda esta carta de Pina Manique e, especificamente, se atenta em "7.º: Colégio de São José. Há nele os órfãos que pela sua tenra idade não podem estar na casa de educação e por aquele mesmo motivo são servidos por mulheres", podemos também, numa prática controlada de anacronismo, fazer um elogio ao anacronismo depois de ouvir e pensar no que aqui e aqui e aqui se diz. Quão cedo se desenvolveram práticas (sociais e educativas) correctas e adiantadas no tempo! Dirão alguns que o risco é muito elevado. Que seja! Dirão outros que a existência da Casa Pia de Lisboa (sobrevivendo, ciclicamente, ao longo de crises graves na sua já longa história) se justifica (ainda) porque ela transporta um muito desconhecido "passageiro clandestino" na história social e cultural da educação em Portugal, seja: muito há ainda a investigar e a conhecer da sua prática ao longo de mais de dois séculos para ajudar (e mudar) o destino de crianças e jovens desfavorecidos. A título de exemplo: saber tanto e quanto (e como) a Casa Pia de Lisboa foi (e ainda é, dizem-me) um laboratório de modernidade educativa em Portugal. Concordo com quem assim pensa, registando que também algo similar acontece com outras instituições portuguesas bem mais antigas no tempo que a Casa Pia de Lisboa. Muito caminho há ainda a fazer. Ponto final.
Adenda
Há quem (corajosamente) faça elogios ao anacronismo em história (anacronismo é o pecado capital na história, gritam alguns: muitos, quase todos). Porém, quando se lê toda esta carta de Pina Manique e, especificamente, se atenta em "7.º: Colégio de São José. Há nele os órfãos que pela sua tenra idade não podem estar na casa de educação e por aquele mesmo motivo são servidos por mulheres", podemos também, numa prática controlada de anacronismo, fazer um elogio ao anacronismo depois de ouvir e pensar no que aqui e aqui e aqui se diz. Quão cedo se desenvolveram práticas (sociais e educativas) correctas e adiantadas no tempo! Dirão alguns que o risco é muito elevado. Que seja! Dirão outros que a existência da Casa Pia de Lisboa (sobrevivendo, ciclicamente, ao longo de crises graves na sua já longa história) se justifica (ainda) porque ela transporta um muito desconhecido "passageiro clandestino" na história social e cultural da educação em Portugal, seja: muito há ainda a investigar e a conhecer da sua prática ao longo de mais de dois séculos para ajudar (e mudar) o destino de crianças e jovens desfavorecidos. A título de exemplo: saber tanto e quanto (e como) a Casa Pia de Lisboa foi (e ainda é, dizem-me) um laboratório de modernidade educativa em Portugal. Concordo com quem assim pensa, registando que também algo similar acontece com outras instituições portuguesas bem mais antigas no tempo que a Casa Pia de Lisboa. Muito caminho há ainda a fazer. Ponto final.
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