A Casa Pia de Lisboa (2)

A decisão política de integrar, a partir de 1935 e até 1942[1], alguns asilos da cidade de Lisboa[2] na Casa Pia de Lisboa (o asilo de Sta Catarina apenas foi integrado em 1972), implicou simultaneamente uma mudança sobre a tradição e a estrutura[3] da Casa Pia de Lisboa, dita Casa Pia de Belém, (considere-se, por exemplo, o facto de ter sido construído um edifício, em espaços da anterior Casa Pia de Lisboa de Belém, para funcionar como Provedoria da nova Casa Pia de Lisboa[4]) e uma mudança na forma de agir da Casa Pia de Lisboa.
Até esse ano de 1942[5] e desde 1833[6], essa Instituição desenvolvia as suas actividades sociais de ensino e de educação (a matriz e o modelo educativo da Casa Pia de Lisboa traduziam-se na feliz expressão -  instruir, educar e amparar - ) em espaços do edifício do Mosteiro dos Jerónimos e da cerca (terrenos anexos) do mesmo Mosteiro dos Jerónimos, em Belém. Com a integração de alguns asilos da cidade de Lisboa não se tratou tão só do alargamento territorial de intervenção da Casa Pia de Lisboa; foi também uma mudança sobre os conteúdos e os sobre métodos de intervenção quer de ordem administrativa quer de ordem social, educativa e pedagógica7].
Mesmo assim deve sublinhar-se que essa integração foi o também o reconhecimento da capacidade de agir e de resolver problemas de crianças e jovens carenciados, com qualidade e eficácia, da Casa Pia de Lisboa (pondere-se o papel relevante desenvolvido por esta Instituição no início da primeira república e durante e após a primeira guerra mundial); perante o caos instalado nos asilos da cidade de Lisboa responderem a uma nova crise social muito grave foi necessário, mais uma vez, recorrer à Casa Pia de Lisboa. [8] Infelizmente, a degradação e o mau funcionamento dos asilos (em diversos e diversificados níveis)[9] era tão grandes e tão eficazes a destruir que acabaram por contaminar e descaracterizar a vida e a memória de inovação educativa da denominada Casa Pia de Lisboa de Belém; esta situação agravou-se gradualmente, desde 1942, na sua prática social e educativa por razões diversas e diferentes e praticamente até ao ano de 1985. 
Este ano de 1985 marca decididamente o fim de uma década de alta turbulência (1974 - 1984) e marca o início de uma nova Casa Pia de Lisboa; início de uma nova Casa Pia de Lisboa materializado na publicação de uma nova Lei Orgânica que integrou algumas tendências de mudança e deu origem a um conjunto de alterações significativas (na estrutura, no funcionamento e na inovação pedagógica) desenvolvidas desde aquela data (1985) de que se destaca:
 - a recuperação, reconstrução e adaptação de velhos edifícios e a construção de novos (entre outros, o Instituto Jacob Rodrigues Pereira, o Centro Cultural Casapiano, a Colónia de Férias da Areia Branca e a Escola/Residência do Arrife, o Colégio António Aurélio da Costa Ferreira);
 - a confirmação (o seu início remonta a 1981) da construção, aquisição, adaptação de pequenas Unidades residenciais/Lares para 18/20 crianças e jovens (no interior e o exterior dos Colégios) que não podiam viver com a sua família;
 - a leccionação do ensino técnico e profissional em espaços novos/recuperados (ensino técnico e profissional que se tinha reiniciado no ano lectivo de 1979/80);
 - a confirmação da intervenção social educativa especializada junto de crianças e jovens surdos e surdocegos;
 - a dinamização das mais variadas actividades de despertar cultural, com realce para o desporto e para a música;
 - a confirmação da tendência para o funcionamento em rede da Casa Pia de Lisboa, onde cada um dos Colégios ganhava e construía a sua missão específica nessa rede e num determinado território educativo;
 - a assinatura de protocolos de cooperação variados com organizações nacionais e estrangeiras;
 - o envolvimento e a participação de ex-alunos na vida da Casa Pia de Lisboa quer através do Conselho de ex-alunos, quer através das suas Associações Institucionais quer quer quando organizados em várias "Décadas" de frequência de ensino na Casa Pia de Lisboa;
 - a publicação semestral de uma Revista da Casa Pia de Lisboa desde Junho de 1988.
Estas concretizações/confirmações/tendências, a par de inovações na área da educação e do ensino (com realce para o ensino técnico e profissional) dirigidas a um número elevado de crianças e jovens, viriam a culminar, no início dos anos noventa, com a atribuição à Casa Pia de Lisboa da "Ordem da Instrução Pública" pelo Presidente da República Portuguesa, Dr. Mário Soares.
Façamos uma pausa para esclarecer uma questão importante.
A Casa Pia de Lisboa no ano de 2002, já não se adequava à tipologia de “instituição total”[10], um tipo de instituição teorizada por Goffman, embora muitos o tenham afirmado (muitas vezes (a maior parte das vezes) sem saber o que diziam!) e pretendendo que assim fosse de facto; considere-se que no ano lectivo de 2002/2003 viviam em Lares/Residências cerca de 650 crianças e jovens (rapazes e raparigas) e frequentavam níveis de ensino em regime de semi - internato cerca de 4000 crianças e jovens (rapazes e raparigas) sendo que, cerca de 2000 (rapazes e raparigas frequentavam cursos técnicos e profissionais de níveis 1, 2 e 3, cursos inseridos em dez áreas de actividades económicas distintas; (realce-se ainda que, com bolsas de estudo pagas pela Casa Pia de Lisboa, frequentavam o ensino superior cerca de 120 alunos e alunas).
Retomemos, pausadamente, a narrativa histórica à procura de explicações causais para o despoletar de uma crise institucional no ano de 2002.
Não custa a entender, acompanhando o sentir do país e da sua capital a partir de 1942, onde se viviam momentos muito difíceis em termos sociais e políticos (atente-se nos efeitos da crise social relacionada com a segunda guerra mundial), que a Casa Pia de Lisboa desenvolvesse uma actividade social e educativa diferente da sua matriz inicial a partir do ano de 1942 (ainda que com algumas inovações importantes; considere-se, por exemplo, a criação e dinamização do Ensino de Artes Plásticas no ano de 1943, ensino retomado anos mais tarde[11]). E porque reflectia essa mesma maneira de estar e de ser do nosso país, também não custa entender que se tenha alterado o seu modelo de intervenção educativa e social, consideradas as significativas alterações estruturais e culturais que lhe foram impostas sem nunca perder, diga-se, a sua matriz de escola para crianças e jovens carenciados.
A partir dos anos sessenta (foi nesta data que se iniciou a guerra no Ultramar Português), a Casa Pia de Lisboa tendo vivido numa apagada tristeza, confinada à tipologia de grandes internatos masculinos e femininos, permitiu a desagregação de algumas práticas correctas e parece ter sido abandonada a ideia  de desenvolver algumas inovações pedagógicas:
 - realça-se a destruição do ensino das artes plásticas que tão bons resultados tinha dado (dê-se o destaque merecido a alguns dos alunos que o tinham frequentado, hoje figuras ímpares da sociedade portuguesa (Gil Teixeira Lopes, Hélder Baptista, Francisco Aquino, entre outros)); mas também se realça a manutenção do ensino oficinal (onde se destaca o curso de relojoaria) e do ensino comercial.
Depois e alguns anos mais tarde, passa a ser muito interessante estudar e perceber o que aconteceu entre Abril de 1974[12] e até 1984[13], relacionado com o ajuste de contas que se entendia ser necessário fazer com alguns dos dirigentes da Casa Pia de Lisboa[14] que se considerava não serem qualificados e se apodava de terem contemporizado com situações incorrectas e criminosas; o testemunho que se descreve em nota de rodapé é deveras elucidativo sobre o nível de degradação a que tinha chegado o funcionamento da Secção de Pina Manique (antiga Casa Pia de Belém) e é elucidativo para perceber alguns (entre outros) dos contornos da origem remota do denominado “Processo Casa Pia”)[15]Ajuste de contas, por um lado também relacionado com a vontade de aplicar uma determinada ideologia política e, por outro lado, relacionado com o soltar de tudo quanto antes tinha emergido na sociedade portuguesa ao nível da mudança de mentalidades e de contestação social, a partir das ideias libertadoras reclamadas pelo denominado "Maio de 1968". Foram dias, meses e anos mágicos[16] mas de loucuras activas onde, em Portugal, não houve o cuidado de fazer esforço para entender que só com educadores, professores e técnicos qualificados se poderia requalificar e expandir o sistema educativo e o sistema de protecção social de crianças e de jovens com necessidades especiais e específicas.
Ou, dito de outra forma. 
Na década 1974 - 1984 viveu-se em Portugal em estado de revolução social e política; um tempo turbulento em que numa linguagem simplista se pode traduzir na ideia de que bastava destruir e o resto viria por acréscimo. Na Casa Pia de Lisboa esse tempo turbulento também aconteceu e  muitas crianças e jovens da Casa Pia de Lisboa foram claramente prejudicados e sobraram muitas feridas: feridas que não sararam, ajustes de contas que ficaram por fazer e responsáveis institucionais e políticos a assobiar para o ar e a fazer de conta que nada tinha acontecido. Erros graves (muito graves) que ainda se estão a pagar ou que ainda devem ser apurados; para que não mais se esqueçam e para que não mais se repitam.
Mas é evidente que a crise institucional de proporções inusitadas (relacionada com abusos sexuais em que as vítimas foram alguns educandos/alunos da Casa Pia de Lisboa) que rebentou e que foi amplamente divulgada pela comunicação social, em finais do ano de 2002, não só não aconteceu deterministicamente como também não foi fruto do acaso e abriu uma "Caixa de Pandora" em Portugal.
Por agora, ficam aqui apenas algumas questões em aberto: 
- será que foi feita justiça às vítimas?
- só a verdade interessa, deve ser procurada e deve ser punido quem for culpado;
- o "Processo Casa Pia" é mais que um simples caso judicial; e o primeiro réu que foi rápida e intencionalmente esquecido, foi o Estado;
 - iniciou-se um debate sobre a organização e o funcionamento da justiça que continua a apaixonar e a indignar a opinião pública;
 - justiça e jornalismo passaram a ser discutidos como nunca até aí; e uma variável se foi impondo ao longo do tempo: qual o papel e quais os limites que a informação deve ter em casos como o "Processo Casa Pia"?
 - podemos confiar no actual sistema de promoção e protecção de crianças e jovens em perigo?
 - há alguma razão para a Casa Pia de Lisboa ter sido escolhida para "bode expiatório" da sociedade portuguesa? A quem e para que fins interessava esta estratégia?
 - a quem interessava o vasto património da Casa Pia de Lisboa?

Quem quer pronunciar-se sobre todas ou cada uma destas questões?
É o tempo de explicar e de espalhar a verdade!
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[1] Foi em 1942 que que se reorganizou a Assistência Pública em Portugal, passando a tutela da Casa Pia de Lisboa para o Ministério da Assistência e Saúde. Este ano de 1942 deve ser fixado também por outras razões. Uma delas e muito relevante tem a ver com o conceito de Segurança Social. Esta edificou-se sobre os alicerces do seguro social e de outras políticas de oferta de serviços públicos e benefícios, transformando-os na perspectiva de protecção social. Para tal, contribuiu decididamente o “Relatório Beveridge”, apresentado ao Parlamento britânico em 1942.
[2]Conferir Maria de Fátima Pinto, Os indigentes, entre a assistência e a repressão, A outra Lisboa no 1º Terço do Século, Livros Horizonte, Lisboa, 1997 pp. 54 e 55: “Penetrar no mundo dos asilos só foi possível através do estudo detalhado de um acervo documental muito extenso e diversificado. Por isso, a escolha que fizemos teve em conta não somente a importância da sua obra assistencial mas também a existência e a facilidade de acesso aos seus arquivos. Uma breve descrição de cada um dos asilos estudados introduz a caracterização do universo heterogéneo, que constituía a sua população: Asilo de N. Senhora da Conceição (…), Asilo de S. João (…), Asilo D. Maria Pia (…), Asilo Municipal de Lisboa (…), Casa Pia de Lisboa (…)”.
[3]Note-se que sobre mudanças nas estruturas há sempre resultados mesmo que sejam aqueles que não se imaginavam. O mesmo não acontece nas mudanças sobre conteúdos e sobre métodos.
[4]Um estudo aprofundado sobre a localização e a arquitectura deste edifício, dar-nos-ia informação relevante sobre a forma de pensar e de estar nessa época no que refere à intervenção junto dos "indigentes".
[5]O expoente máximo do fim da Casa Pia de Lisboa de antes de 1935/42, foi o seu ex-aluno Augusto Poiares (o Decano dos Casapianos) que nasceu em 30 de Abril de 1914, admitido na Casa Pia de Lisboa em 1924, onde concluiu o curso industrial e donde saiu em 1933. Em 1955 fundou com José Ilharco e Albano Vieira o Jornal “O Casapiano” (jornal muito importante para consulta sobre a vida das associações casapianas) e durante muitos anos manteve um programa na rádio “A voz do Casa Pia”. O seu nome (ainda em vida) foi dado a um Lar/residência no Colégio de Pina Manique. O maior elogio a fazer-lhe, é dizer que nunca desistiu da sua Casa Pia de Lisboa. Transcreve-se um pequeno texto que ele escreveu em 2003: “Na madrugada de 29 de Abril de 2003, precisamente na véspera de completar os meus 89 anos, tive um sonho. Ao acordar, descrevi-o na íntegra a minha mulher. Foi um sonho que me fez recuar a uma realidade já distante, uma realidade situada nos saudosos anos vinte, um tempo em que eu e os meus colegas casapianos tínhamos a sorte de vivermos num dos mais belos edifícios do mundo, o Mosteiro dos Jerónimos. E, no meu sonho, eu erra outra vez o menino casapiano a servir de guia aos turistas nacionais e estrangeiros que visitavam o belo monumento manuelino. E, ao meu lado, eu tinha, de novo, os meus queridos companheiros, o Eduardo Nery, o Albano Vieira, o António Ferreira Pinto, e outros, muitos outros! Vivi a minha infância e a minha adolescência, dos 10 aos 19 anos, entre as paredes sagradas daquele histórico Mosteiro. Comíamos no refeitório onde, durante três séculos, os monges de S. Jerónimo fizeram as suas refeições, e o nosso recreio, meu e de todos os “gansos”, era no jardim e nas galerias do Claustro. Éramos pobres mas vivíamos num cenário de príncipes! Conhecíamos todas aquelas pedras rendilhadas e sabíamos narrar a sua história aos visitantes. E falávamos-lhes também com muito orgulho da história da Casa Pia, que os turistas escutavam enternecidos. A Casa Pia viveu ali, abrigada nos muros do lindíssimo monumento quinhentista, por mais de um século. Jerónimos e Casa Pia, dos monumentos nacionais cuja história gloriosa se entrelaça. Se eu fosse poeta, contava e cantava com outra beleza e outro sentimento o meu sonho! Mas ele viverá para sempre comigo, pelo menos até aos meus cem anos de vida (estarei outra vez a sonhar?!...)Ah!, já me esquecia! É que o sonho de que vos falo envolvia também o nosso saudoso campo do Restelo, onde, com frequência, os casapianos disputavam animadas partidas de futebol com equipas estrangeiras. Claro que, depois dos jogos, aproveitávamos sempre para proporcionar aos nossos adversários uma visita à Casa Pia e ao Mosteiro dos Jerónimos, o que os deixava deslumbrados!
Foram bons tempos, aqueles que aqui vos recordo, mas o meu desejo mais ardente é o de que os melhores tempos da Casa Pia não sejam os do passado, mas os do futuro!”.
[6]Perceba-se quanto importante é conhecer a história da Casa Pia de Lisboa (e quão importante ela é para a história da educação e do ensino em Portugal). A título de exemplo, transcreve-se uma pequena notícia publicada na “Chronica constitucional de Lisboa, nº 9 (Segunda-feira, 5 de Agosto de 1833”): “Paços da Necessidades em 3 de Agosto de 1833. Sua Magestade Imperial o Duque de Bragança (…) Às 5 horas da tarde sahio com o seu Ajudante de Campo de Serviço Calça e Pina, e foi à Casa Pia, onde deu diversas Ordens sobre sustentação e educação da Mocidade, Prohibio o emprego de castigos afflitivos, como palmatoadas, açoutes, etc., substituindo estes por outros de correcção, como pequenas prisões etc. Ordenou que os respectivos Mestres levassem os meninos a passeio duas vezes em cada semana, e procurassem por todas as maneiras educa-los nos sãos princípios de huma sólida Religião, acostumando-os a obedecer, a respeitar os seus semelhantes e a respeitar-se a si mesmos”. 
[7] Ressalve-se no entanto que, mesmo sendo assim, as dinâmicas de socialização das crianças e dos jovens tutelados pela Casa Pia de Lisboa neste período, continuaram a sua participação na construção do sistema educativo como hoje o entendemos.
[8] É evidente que nesta altura já a Casa Pia de Lisboa sofria as consequências da gestão política do país. Sigamos o pensamento de Rogério Fernandes: “O advento da Ditadura, adoptando o maltusianismo financeiro como forma de equilibrar as despesas públicas, fez baixar drasticamente a qualidade do ensino e destruiu sistematicamente todos os focos pedagógicos renovadores, os quais se imbricavam intimamente com os ideais de autonomia da escola, dos professores e dos educandos, do mesmo modo que traduziam o reconhecimento do papel activo dos docentes no processo educativo. De instância libertadora, a escola passava a ser o molde onde se produziam as almas obedientes e conformistas. Apesar de clareiras episódicas ao longo desses longos cinquenta anos, os caminhos do futuro e da inovação ficariam bloqueados”.
[9]Pondere-se que o funcionamento dos asilos (ainda que com tradição importante na área da educação) se foi degradando e perceba-se que esta degradação se manteve durante muitos anos, ainda que seja possível perceber que algo ia mudando para melhor. A título de exemplo, atente-se com atenção, numa pequena parte de uma comunicação de uma professora, apresentada numas Jornadas de Formação, em 19 – 21/11/84, no Porto: “Problemas de Jovens privados de meio familiar normal”.“ (…) Não podemos generalizar e dizer que as crianças na situação de internamento estejam todas nas mesmas condições: uma D.T. falou-nos de dois alunos de um asilo que embora carenciados de afecto falavam de “a nossa casa” (referindo-se ao asilo) e porque tinham uma boa relação com ela a convidavam várias vezes para ir “à nossa casa”, o que parece muito positivo. No entanto o que é mais habitual é ouvirmos da boca do C. D.: quando trazem alunos por razões de comportamento ao nosso gabinete já sabemos que entre eles há alunos de internatos…Agressividade, roubo, faltas às aulas – todos o sabemos – são “sintomas” de que qualquer coisa não corre bem. Os D. T. e os professores em geral dizem-nos que muito frequentemente estas crianças revelam falta de higiene, usam roupas desajustadas (um dos meninos andava de gabardina) alimentam-se mal (mesmo quando almoçam na cantina ainda há casos de roubos de lanches), têm aspecto débil, cabelos espetados…Há asilos em que vigiam rigorosamente e numa perspectiva muito repressiva as idas à escola: só autorizam a ida às aulas curriculares. Se falta um professor devem voltar à instituição, contrariando mesmo as regras da Escola Preparatória. Não frequentam aulas do tipo “tempos livres”. Não vão a actividades culturais ou recreativas organizadas pela escola (circo, festa de Carnaval, actividades de prevenção rodoviária, excursões). Faltam às aulas “porque estão de castigo”. Outras vezes sucede o inverso: contam-nos o caso de dois alunos que não punham os pés na escola desde o início do ano, eram vistos pelos colegas nas imediações da escola, frequentando casas de jogos que existem na área da escola. Contactado o internato veio um funcionário à escola que afirmou peremptoriamente que um desses alunos não era da sua instituição (o processo do aluno evidenciava o contrário) ”.
[10]O objectivo das investigações de Goffman era conhecer e perceber o mundo vivenciado e percepcionado pelos internados em instituições totais. "Uma instituição total pode ser definida como um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos, com situação semelhante, separados da sociedade por considerável período de tempo,  levam uma vida fechada e formalmente administrada”. O seu interesse fundamental era chegar a uma versão sociológica da estrutura do eu.
[11]Transcrevem-se os três primeiros parágrafos da comunicação do Professor escultor Hélder Baptista (ex-aluno da Casa Pia de Lisboa) na abertura solene do ano lectivo de 1994/95: “Congratulemo- nos com a Casa a Pia de Lisboa pela reposição de uma educação genérica artística e de uma educação artística vocacional, especializada e destinada a indivíduos com comprovadas aptidões ou talentos, em alguma área artística específica. Com esta decisão, a Casa Pia retoma a larga experiência (de que é fiel depositária) na formação global e vocacional do aluno, o qual, em minha opinião, deve ser peça activa, integrante e integrada, do sistema didáctico. Através das suas respostas devem surgir continuamente dados novos, que permitam as alterações necessárias nas programações. Foi este o espírito que ditou a criação do Ensino de Artes Plásticas no ano de 1943, num período em que as restrições eram frequentes. O equipamento do curso foi construído nas oficinas da Casa Pia segundo a orientação dos professores e mestres, os quais possuíam grande qualidade pedagógica e invulgares capacidades de empenhamento. Desta equipa, resta a generosa presença do Professor Martins Correia, que continua com os seus assomos de inquietação, usando todos os meios de modo a não se deixar ultrapassar pelo tempo”.
[12]Leia-se, com atenção, o testemunho de um ex-director da Secção de Pina Manique nesses anos (testemunho publicado em livro de autor, em 2003): “Um outro fenómeno, verificado no âmbito do famigerado escândalo ou sucessão de escândalos da Casa Pia, cuja motivação se sente grande dificuldade em compreender, tem a ver com a delimitação temporal das responsabilidades políticas. De facto, é extremamente difícil de entender e aceitar que, tendo sido o período de 1975 a Julho de 1980, aquele durante o qual a Casa Pia e, particularmente, o Colégio Pina Manique atravessaram a fase mais conturbada dos últimos tempos e se assistiu ao afrouxamento ou até abrandamento da disciplina; à impunidade dos delituosos; à delapidação do património; à postergação da Ética, da Moral e da Justiça; à destruição de estruturas educativas; ao desrespeito por dirigentes, professores e funcionários; à perda da dignidade humana dos alunos e à prática da sua prostituição; ao surgimento e proliferação de grupos organizados de consumo e tráfico de andromosexualidade e de droga; em suma, à degradação física, funcional e mora da secular instituição, é difícil de entender e aceitar – dizia que não se peçam e exijam responsabilidades políticas aos membros dos governos que durante esse período exerceram a tutela sobre a Casa Pia. Do mesmo modo se me apresenta de quase possível entendimento o motivo por que se exigem responsabilidades apenas aos responsáveis políticos de 1980 para diante, precisamente a data a partir da qual o membro do governo em exercício corajosamente formulou propósitos e tomou medidas atinentes ao saneamento da instituição. Quais serão as razões que justificam este procedimento, esta táctica selectiva, esta espécie de perseguição ideológica? Que interesses se movimentarão por trás deste badalado “escândalo da Casa Pia”, cujo desenvolvimento cada vez mais se descentra dos reais interesses pedagógicos e educativos da instituição e se orienta em sentidos, no mínimo, estranhos? Venha prestes a terreiro e tenha a coragem de responder quem sabe ou quem presume que sabe. O povo, o país inteiro, tem o direito de ser esclarecido sobre questões que lhe dizem respeito; e as questões que têm a ver com a governação e os governantes dizem respeito ao Povo”.
[13]Nos anos de 1980, a tutela da Casa Pia de Lisboa era do Ministro Morais Leitão que tinha como Secretários de Estado Teresa Costa Macedo e Bagão Félix. Estes dois últimos, por razões diferentes,  tiveram protagonismo na crise da Casa Pia de Lisboa que se iniciou em Novembro do ano de 2002.
[14]Tenha-se presente que, tanto nessa nessa altura como em 2002, a Casa Pia de Lisboa era essencialmente e sobretudo identificada com o Colégio de Pina Manique (que corresponde à Casa Pia de Lisboa antes do ano de 1942).
[15]Atente-se no testemunho de um ex - Director da Secção de Pina Manique, nos anos de 1980 (que foi professor nos anos de 1969 no Instituto Adolfo Coelho, estabelecimento que na altura estava integrado na Casa Pia de Lisboa): “…Parece, contudo, que o boato, o diz que diz-se, a intriga, o falso sigilo constituíam-se numa forte componente da cultura da Instituição e o Chefe de Disciplina sucumbiu à tentação de “só mais uma pergunta”: se eu imaginava a razão porque o Provedor em funções andava tão nervoso e agastado. Perante o desconhecimento que manifestei, mencionou pressões feitas directamente pelo Provedor sobre o preceptor responsável pelo “Grupo de Desvinculação dos Alunos Internos de Pina Manique” para que, até ao dia 27 daquele mês de Julho, tivesse o internato limpo, com o argumento que havia dezenas de vagas para serventes na construção civil. Então, como não conseguisse os seus desejos, porque “não se escorraçavam alunos de uma casa como se escorraçam os cães”, ficara nervoso e até perturbado. (…) No seu entendimento, a Casa Pia e Pina Manique atingiram o clímax da degradação moral e organizativa. As suas instalações constituíram-se em albergue de potenciais criminosos e agitadores. Agitadores eram os funcionários e os alunos que, comunistas assumidos, promoviam e instalavam a desordem, a indisciplina, a contestação, o caos. Potenciais criminosos eram os alunos internos maiores de dezoito anos que consumiam e traficavam droga, que consumiam e traficavam homossexualidade, que dispunham das chaves de todas as dependências do estabelecimento e apoiavam ex-alunos que desde há muito iam saqueando o vasto património da instituição, sem que ninguém reagisse, apesar das denúncias feitas. Compreensivo e nada perturbado com a actividade contestatária de funcionários e alunos, fiquei, entretanto, petrificado quanto às restantes actividades de que me dava conhecimento. Na mente ainda bailou a ideia de denunciar o compromisso antes assumido com a Secretária de Estado da Família, mas, recomposto da surpresa, prossegui na audição do relato do Chefe de Disciplina. Este teve o cuidado de esclarecer que algumas das afirmações proferidas eram de difícil comprovação, contudo, havia sinais que indiciavam a ocorrência dos actos denunciados. Doutras tinha provas concretas. Para o confirmar, retirou da pasta que levava consigo algumas seringas e doses de narcóticos que encontrara nas camaratas. A seguir, mostrou uma meia dúzia de cartas de personalidades estrangeiras, cartas que ele interceptara e eram endereçadas a alunos da instituição a combinar encontros em datas e locais específicos. Questionado sobre senão denunciara os factos que acabara de narrar, com a raiva estampada no rosto, “gritou” que não valia a pena, que de todas as diligências feitas fora ele a ficar mal visto por defender os alunos e o bom-nome da casa. Que estava a decorrer um processo contra um funcionário denunciado por ter violado alunos da instituição, mas apenas num caso, no qual estivera envolvido um cidadão americano rico, houve consequências políticas que se traduziram na demissão do Provedor de então. E perante alguma perplexidade que não fui capaz de dissimular, fez referência à existência de um poema épico intitulado “Os Gansíades”, no qual seriam cantadas “praxes menos ortodoxas impostas por alunos mais velhos aos alunos mais novos”.
[16]É altura de recordar o refrão da cantiga de que alguns ainda se lembram: “ Que força é essa amigo… que te põe de bem com os outros e de mal contigo? Que força é essa, amigo?”

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