"O que fui fazer a Birkenau? Porquê voltar "àquilo"?


"O que fui fazer a Birkenau? Porquê voltar "àquilo"? Lembro-me de ter circulado de maneira indecisa, embora, evidentemente, orientada por um saber cosntituído desde a infância. Atravessei o bosque de bétulas sem plano preconcebido, e ainda assim caminhava numa direção imperiosa. tudo isso num estado de ânimo flutuante, porém conturbado, mais indiferente do que a princípio eu teria imaginado, embora integralmente solicitado pela violência do lugar. Senti a atmosfera singular daquele domingo de verão, a escala imprevisível do espaço, a pressão do céu. Olhei as árvores como quem interroga testemunhas mudas. Procurei não detestar demais as pobres flores cruéis. Reinscrevi, enquanto andava, este lugar da minha história familiar, meus avós, mortos aqui mesmo, minha mão que perdeu toda a faculdade de tocar no assunto, minha irmã, que amou a Polónia numa época em que eu não podia entender, meu primo, que ainda não está preparado, imagino, para essa espécie de reencontro fatal com a história. Pensei naquele amigo judeu polonês que, no mesmo momento, morria na outra ponta da Europa. Para não ficar fascinado, nem aterrorizado, fiz então como todo o mundo: tirei algumas fotografias ao acaso. Quer dizer, não tão ao acaso. De volta para casa, vi-me diante daqueles poucos pedações de casca, diante da tabuleta de madeira pintada, da loja de suvenires, do passarinho entre os arames farpados, do simulacro de paredão de fuzilamento, dos solos bem reais fissurados da morte e do tempo percorrido desde então, da janela da guarita, do pedaço de terreno baldio anunciando o inferno, do caminho de terra entre dias cercas eletrificadas, da porta de galpão, dos raros troncos de árvores, e das frondes altas no bosque das bétulas, do rastilho de flores silvestres defronte do crematório V, do lago entupido de cinzas humanas. Poucas imagens, quer dizer, três vezes nada para uma história desse tipo. Para a minha memória, contudo, elas são o que algumas aparas de casca de árvore são para um único tronco: lascas de pele, carne germinando." Georges Didi-Huberman, Cascas, 2017, pp. 71, 72,73

Aqui, com música em fundo.

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