Bendita cesta com legumes, bendita conversa, e mais não escrevo
Pois
claro que sei, ora essa, claro que sei, sei que não se lembra que hoje é dia de apenas
comer legumes: olhe só a cesta tão bem composta que eu aqui lhe trago. Juro, seja eu ceginho de gota serena se não é como eu digo, juro que ouvi a minha fada-sereia-musa, linda no aparecer num vestido verde florido, a soprar-me que hoje não é dia comer carne, é sexta feira santa. Embasbaquei, mas sim, gosto de a sentir perto de mim com todos os seus muitos sentidos entrançados na beleza dela. Não estive com meias medidas: cesta uma treta, ripostei, a imagem de uma cesta, isso sim. Tanto dá, ciciou, para lhe dizer o que pretendo a imagem chega, aposto que já mergulhou os olhos e as mãos na cesta e nos legumes e nas tábuas adjacentes. Sim, é verdade, respondi enquanto a olhava (pode lá haver neste mundo alguém tão prendado como ela!), é verdade que o tacto se juntou à visão e até o olfacto e o gosto e a audição se armaram ao pingarelho, tomaram conta de mim, imagine que até o som da cesta e das tábuas eu ouvi. Meu admirador mais que eu (quando a ouvi dizer meu mais que eu até me arrepiei), interrompeu-me de olhos à proa de um sorriso, sou eu que desenvolvo as suas capacidades sinestésicas, já ouviu falar em sinestesia? Sim, sei o que é a sinestesia, respondi, e balbuciei ainda em jeito de elogio: quando a oiço, retirada a névoa do ciúme e ébrio de si, vejo-a linda e a cores, irresístivel, até o peito se me afunda no coração. Sorriu deliciada naquele seu sorriso que nasce nas cócegas e despediu-se pedindo-me uma flor, uma nuvem fofa e um poema. Disse ainda que iria levar amêndoas a uma sua tia asadinha, e (garanto que ouvi bem), em surdina e toda ternura, suspirou: qual Omar Khayyám ele gosta de mim cem vezes mais que antes. Eu (o ele sou eu, óbvio), aparvalhado mas na sua peugada, fiquei a pensar que estas nossas conversas (a de hoje em particular) são pródromos de um futuro agradável que ambos ainda não reconhecemos. Bendita cesta com legumes, bendita conversa, e mais não escrevo.
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