A realidade é muito mais do que alguns bem pensantes dizem

Essa coisa que alguns bem pensantes chamam de realidade, é mais, é muito mais do que eles dizem, garanto-lhe. Olálá, pensei comigo, vamos ter uma conversa depois de uns dias de férias, por onde é que ela terá andado, com quem? Amador dela e a abarrotar de desejos ardentes, olhei-a com ar pesquisador, percebi, estava apreensiva (vá lá saber-se porquê, mistério ou talvez não), esperei prudente, ela não se conteve e explicitou com fingida indiferença: a realidade é mais que um resíduo da experiência (mais ou menos idêntico para cada pessoa) quando cada pessoa se confronta com os objectos e com as outras pessoas: se a realidade fosse apenas isso, bastaria tão só uma espécie de filme cinematográfico, e tudo o mais que aparecesse (digo, que se afastasse dos dados) seria artificial e irrelevante. Não sei, interrompi, não sei o que pretende com estas suas afirmações, mas se não tenho dificuldade em concordar que a realidade é mais que um resíduo da experiência, considero, no entanto, que será mais interessante continuar esta conversa a partir de uma reflexão sobre imagens suscitadas pela vida, imagens que nos trazem sensações múltiplas e diferentes. Cedo, apressou-se a interromper-me, digo, cedo e concedo, vamos lá então a isso, quer começar? Touché, suspirei em trejeito aflito, o meu coração corria para ela. Qual quê, suspirou divertida, e felina desafiou-me a meia voz: se as imagens da vida que me vai relatar e que a si lhe provocam sensações múltiplas e diferentes (gaguejou), se essas imagens da vida tiverem a ver comigo, se estiverem em sintonia com a temática omariana, sim, estou interessada em saber mais. Seja, retorqui, vamos lá. Ela era toda olhos grandes à proa de um sorrisinho tímido e matreiro (raios, tão linda é, linda como uma flor especial!). Por exemplo, continuei, aí tem, surge-me agora uma imagem de uma mesa em vidro que me faz sentir e apreciar o sabor do chá de camomila e a textura de uma tira de pão centeio albardada com um saboroso queijo da serra. Essa mesa de vidro, perguntou ela de supetão, assenta num chão limpíssimo e está decorada com uma fruteira em cima de uma renda de linho? Não estou a ver, respondi, mas que recordo e sinto (neste preciso momento) a modos que um fim de dia perfeito e intacto e pleno, que vislumbro um vaso cheio de perfumes, que saboreio sons doces e palavras requintadas, que me deleito em projectos e climas serenos, lá isso tudo sinto, vislumbro, saboreio, deleito. Uhm, ouvi-a trautear (sorridente) enquanto esfregava o nariz com dois dedos finos e atrevidos: que se passará, mesa de vidro, chão limpíssimo, fruteira fina, uhm! Sem tem-te nem mas, trauteou rumorejante como água e desvelando-se em encanto: conheço essa mesa e o chão e a fruteira e tudo o mais, e o mais, o vaso cheio de perfumes, os sons doces e as palavras requintadas e os projectos e os climas serenos são a essência de mim. Belisquei-me, acordei, vou continuar a viver a minha solidão, já estou habituado, mas: sim, concordo, a realidade é mais, é muito mais do que alguns bem pensantes dizem. Como é por demais evidente.
Adenda 1
Também na vida política a realidade é muito mais do que alguns bem pensantes dizem. Para o confirmar, leia-se esta acutilante forma de olhar para a realidade política portuguesa.
Adenda 2
Ora aqui está uma leitura diferente da realidade (por muitos) apregoada: bem pensada e bem escrita.
Adenda 3
E esta outra leitura não fica atrás: brilhante.

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