HISTÓRIA DO ESPELHO
Ao
devorar esta obra, o leitor cedo se aperceberá de que se trata de um livro
fascinante. Nele, Sabine Melchior-Bonnet alia ciência e arte, literatura e
filosofia, história e meditação, com uma mestria e uma qualidade de escrita por
vezes impressionantes. Gostávamos de escrever como ela ou, mais precisamente,
de no momento certo conseguir encontrar a fórmula fulgurante que ilumine o
leitor.
Apresentar
um ensaio histórico sobre o espelho é já em si uma ideia notável. Como é que
ainda ninguém se tinha lembrado disso? A evolução deste objecto, outrora
precioso, hoje banal, marcou o percurso da nossa civilização. Para nos ajudar
nesse caminho através do tempo, Sabine Melchior-Bonnet começa por recordar as
técnicas primitivas, o uso do metal, o lento aperfeiçoamento do espelho de
vidro, as dificuldades da estanagem, a passagem do vidro soprado ao vidro
vazado, o papel fundamental que Murano e, depois, a Companhia de Saint-Gobain
tiveram no fabrico dos espelhos.
No
século XVI ainda coexistiam espelhos de aço e espelhos de vidro. Serão estes
que virão depois a triunfar, no século XVII, nomeadamente em Versalhes, onde os
trezentos e seis espelhos dão a ilusão de formar uma peça única; no fim do
século, dois terços dos lares parisienses já possuem espelho. No século XVIII
ele constitui até um elemento essencial da decoração, que tende a substituir as
tapeçarias; é nessa altura que o psiché – um grande espelho de inclinação
variável, articulado sobre uma armação assente no chão – começa a sua bela
carreira. O século XIX assistirá ao triunfo do roupeiro com espelho. E nos
nossos dias vemos espelhos por toda a parte sem lhes prestarmos a mínima
atenção. (…)
(Do prefácio)
(Mensagem recebida)
OS ESPELHOS
(Mensagem recebida)
OS ESPELHOS
Eu que senti o horror dos espelhos
Não só ante o cristal impenetrável
Onde acaba e começa, inabitável,
Um impossível espaço de reflexos
Mas ante a água especular que imita
O outro azul no seu profundo céu
Que às vezes raia o ilusório voo
Da ave inversa ou que um tremor agita
E ante a superfície silenciosa
Do ébano subtil cuja tersura
Repete como um sonho a brancura
De um vago mármore ou uma vaga rosa,
Hoje, ao fim de tantos e perplexos
Anos de errar sob a diversa lua,
Me pergunto que acaso da fortuna
Determinou que temesse os espelhos.
Espelhos de metal dissimulado
Espelho de acaju que entre a bruma
Do seu rubro crepúsculo esfuma
Esse rosto que olha e é olhado,
Infinitos os vejo, elementais,
Executores de um antigo pacto
Multiplicar o mundo com o acto
Generativo, insones e fatais.
Prolongam este vão mundo incerto
Na sua vertiginosa teia;
Às vezes pela tarde os rodeia
O hálito de alguém que não está morto.
Espia-nos o cristal. Se entre as quatro
Paredes da alcova há um espelho,
Já não estou só. Há outro. Há o reflexo
Que encena n`alba sigiloso teatro.
Tudo acontece e nada se recorda
Em esses gabinetes cristalinos
Onde, como fantásticos rabinos
Lemos os livros, da direita à esquerda.
Cláudio, rei de uma tarde, rei sonhado,
Não sentiu que era um sonho até ao dia
Em que um actor mimou sua felonia
Com a arte silenciosa, num tablado.
Que haja sonhos é estranho. Que haja espelhos,
Que o usual e gasto repertório
De cada dia inclua o ilusório
Orbe profundo que urdem os reflexos.
Deus (assim pensei) põe um empenho
Em toda essa inconstruta arquitectura
Que edifica a luz com a tersura
Do cristal e a sombra com o sonho.
E Deus criou as noites, que se armam
De sonhos e as formas do espelho
Para que o homem saiba que é reflexo
E vaidade. Por isso nos alarmam.
Não só ante o cristal impenetrável
Onde acaba e começa, inabitável,
Um impossível espaço de reflexos
Mas ante a água especular que imita
O outro azul no seu profundo céu
Que às vezes raia o ilusório voo
Da ave inversa ou que um tremor agita
E ante a superfície silenciosa
Do ébano subtil cuja tersura
Repete como um sonho a brancura
De um vago mármore ou uma vaga rosa,
Hoje, ao fim de tantos e perplexos
Anos de errar sob a diversa lua,
Me pergunto que acaso da fortuna
Determinou que temesse os espelhos.
Espelhos de metal dissimulado
Espelho de acaju que entre a bruma
Do seu rubro crepúsculo esfuma
Esse rosto que olha e é olhado,
Infinitos os vejo, elementais,
Executores de um antigo pacto
Multiplicar o mundo com o acto
Generativo, insones e fatais.
Prolongam este vão mundo incerto
Na sua vertiginosa teia;
Às vezes pela tarde os rodeia
O hálito de alguém que não está morto.
Espia-nos o cristal. Se entre as quatro
Paredes da alcova há um espelho,
Já não estou só. Há outro. Há o reflexo
Que encena n`alba sigiloso teatro.
Tudo acontece e nada se recorda
Em esses gabinetes cristalinos
Onde, como fantásticos rabinos
Lemos os livros, da direita à esquerda.
Cláudio, rei de uma tarde, rei sonhado,
Não sentiu que era um sonho até ao dia
Em que um actor mimou sua felonia
Com a arte silenciosa, num tablado.
Que haja sonhos é estranho. Que haja espelhos,
Que o usual e gasto repertório
De cada dia inclua o ilusório
Orbe profundo que urdem os reflexos.
Deus (assim pensei) põe um empenho
Em toda essa inconstruta arquitectura
Que edifica a luz com a tersura
Do cristal e a sombra com o sonho.
E Deus criou as noites, que se armam
De sonhos e as formas do espelho
Para que o homem saiba que é reflexo
E vaidade. Por isso nos alarmam.
Jorge Luís Borges in O Fazedor,
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