A mente integrada resulta de uma actividade fragmentada
Esta coisa do
pensamento tem que se lhe diga, tem mesmo, são favas contadas. A gente vai de
mansinho saber o que o excelente António Damásio diz sobre o que constitui um
pensamento e, zás trás catapraz, ora toma: o pensamento é feito de imagens. Mas ele diz mais. Diz ainda que ninguém negará que o pensamento também é constituído por
palavras e por símbolos abstractos não imagéticos, só que não damos conta de as
palavras (bem como outros símbolos) serem baseados em representações topograficamente
organizadas; e daí, portanto, serem também imagens. Quanto às palavras até
parece ser como ele diz, penso eu: sei, de fonte limpa e límpida, que palavras que utilizo na minha
fala interior, antes de as dizer ou escrever uma frase, existem sobre a forma
de imagens auditivas e visuais na minha consciência enamorada, por exemplo, a expressão "rotunda da
asadinha". Pior a emenda que o soneto, agora não sei sair daqui, era só o que me faltava, que vida, que sina, que atanrantice danada. Ou seja. Como conciliar a
representação disposicional da "rotunda da asadinha" com as minhas imagens visuais e
auditivas da tia Maria que também moram na minha "rotunda da asadinha"? Eureka! Descobri. Já sei. A tia Maria, enquanto pessoa completa, é propriedade de um outro cérebro (único) que, quando interage comigo, evoca lembranças de coisas relacionadas com a tia Maria.
Pé ante pé, como quem não quer abanar pensamentos bons, fui à procura de uma
explicação (convincente) num extraordinário livro de António Damásio. Sem apelo nem agravo (outra vez!) estatelei-me ao
comprido, suspirando: não é possível, não é mesmo, pode lá ser! Duvidam? Ora leiam comigo, com vagar e com tempo, como convém: “Caso
pudéssemos entrar no interior das representações disposicionais visuais para a tia Maria de algum de nós, numa
experiência imaginária a decorrer daqui a cinquenta anos, prevejo que não
veríamos nada que se parecesse com a tia Maria porque as representações
disposicionais não estão
topograficamente organizadas. Se, no entanto, quiséssemos inspeccionar os padrões
de actividade que ocorrem nos córtices visuais de primeira ordem dessa pessoa
no intervalo de aproximadamente uma centena de milissegundos após as zonas de
convergência para a tia Maria terem disparado, seríamos provavelmente capazes
de ver padrões de actividade que tinha alguma relação com a geografia do rosto
da tia Maria. Existiria uma grande consistência estrutural entre o que
conhecíamos do seu rosto e o padrão de actividade que encontraríamos nos
córtices visuais preliminares desse alguém que também a conhecia e que estava a
pensar nela.” ((O Erro de Descartes (ed.2011) p. 145)). Atónito com tantas estranhas e desvairadas coincidências, irei pela manhã (está decidido) dar um passeio: meto-me no carro, aí vai ele, dou duas voltas à rotunda da asadinha e depois vou ver o mar, vou chegar à beirinha da água e arregaçar as calças (e sapatos e meias para que vos quero!) e sentir a areia rugosa e molhar os pés durante o tempo que me apetecer... Se escreverei um poema? Se a tia Maria o ditar, sim, óbvio.
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