Há dias, tem dias

Há dias, tem dias, soprou-me, manhãzinha, uma fada com ar enigmático. Como é que é? Tem mesmo que me acordar tão cedo? Que raio é lá isso do "há dias, tem dias"? Insurgi-me. Meu caro, segredou, estou deveras incomodada comigo, nasci assim, sinto assim, que lhe hei-de eu dizer mais que "há dias, tem dias"? Explique-se por favor, respondi, explique-se e nada de rapinar outra vez (que mania a dela!) a minha manta de lã, o frio já se fez anunciar e até já chegou mais cedo. Tenho sim, tenho, suspirou, tenho mesmo que lhe revelar um segredo, mas antes aprecie o virtuosismo do Yo Yo Ma. Ora atente e repare, meu caro admirador de mim, como, passado um primeiro momento, ele desaparece na música: o corpo começa levemente a balouçar, o movimento alastra ao braço direito e não tarda que os ombros fiquem relaxados e expressivos, encolhendo-se à medida que o ritmo aumenta; às vezes fecha os olhos como se estivesse enfeitiçado pela beleza da música. Obrigado, ciciei, agora compreendo o seu "há dias, tem dias", fique com a minha manta, é toda sua. Com um ténue sorriso, ela (feliz) perguntou-me se eu tinha reparado que tinha cortado o cabelo e: gosta, pois não gosta? Claro que sim, gosto, gosto tanto como da música que escolheu, sosseguei-a, fica ainda mais linda. Só perto de si e enroladinha na minha manta de lã merina branca, me sinto bem e com vontade de brincar, trauteou enquanto deixava cair um ai suspirado e disse: Santo Deus, o meu "há dias, tem dias" significa algo diferente, ou seja, por que motivo devo justificar, explicar ou desculpar-me das minhas antipatias? Tenho-as, meu caro, com os nervos à flor da pele; não suporto nem bêbados, nem pedantes, nem mulheres de cabelo cortado à escovinha com ar insuportavelmente masculino, nem bajuladores, nem os detentores da verdade, nem os salvadores do mundo e nem os que seguram os copos de vinho pela base; chega por agora, a lista é ainda mais comprida... Devo ter feito uma cara tão estranha, tão espantada, que ela resolveu sorrir, brincar, aninhar-se, e sussurrar baixinho, invocando repentina alegria e activando os olhos-faróis: não se amofine, meu caro, pense sempre em mim (sempre) e nunca esqueça de andar a tiracolo com um fragmento de Nietzche, este, "a luta da maturidade está em recuperar a seriedade de uma criança a brincar."

Adenda (mensagem recebida)
Surpresa, meu caro, surpresa! Até que relatou bem a nossa conversinha de pé de orelha. Mas sei (sei e pronto e chega, sei) sei que adoraria que eu fizesse uma lista do que eu gosto. Vou fazer-lhe a vontade (em troca da sua manta de lã merina branca que é minha, óbvio): só que a minha lista vai ser do que eu quero. Aí a tem. Quero:
Estar sozinha consigo.
Esvaziar o dia em copo cheio de riso.
Ouvir a música do silêncio.
Mergulhar em luar de estação seca.
Subir caminhos que descem.
Lutar sem fazer vítimas.
Sonhar de olhos abertos.
Rir até às lágrimas.
Falar a sério, sorrindo.
Ter medo, não ser cobarde.
Da ofensa, o esquecimento.
Encontrar resposta ao que (ainda não) encontrei.
Encher a alma de pequenos nadas.
Fazer da ternura sem jeito, amor perfeito.
Ver amanhecer o sol poente e anoitecer madrugadas, sem cansaço.
Aprender a afirmação de dizer não.
Ser muitas, sendo eu.
Cobrir a máscara com o rosto.
Da loucura, o génio.
Ter no breve, eternidade.
Do tempo, o vagar.
Morar fora do mapa.
Envelhecer sendo criança.
Morrer por ter vivido.
No fim, recomeçar.

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