Como se fosse a primeira vez


Música - piano...
Pois pode acontecer, quem sabe se não está mesmo a acontecer, soprou-me, madrugada cedinho, a única fada que apenas aparece quando lhe dá na real gana. Pus a minha manta de lã merina a bom recato e fiz que não ouvi, eram lá horas de conversar, esperava-me um dia muito ocupado, aninhei-me no canto esquerdo da minha cama e procurei adormecer; fingi dormir (não fosse o diabo tecê-las) mas que ela estava linda (linda é pouco, pouco mesmo) lá isso estava, enquanto (enigmática) me dizia: “meu caro, na minha manta de lã merina branca me osmoso, me alimento, me encasulo, me enquisto.”. Nada disso, disparei (há limites, tem que haver), a manta é minha, minha, minha. Minha, minha, minha, trauteou ela, disse bem, a manta de lã é minha. Acabou-se de vez, ouvi-me a refilar, acabou; se pretendia destrambelhar-me, bingo, conseguiu. Alto aí, calma, interrompeu-me divertida, eu explico-lhe, meu caro. Está a dormir e a sonhar comigo, insistiu galhofeira, garanto-lhe eu que acabei de apreciar o namoro dos pardais no meu terraço. Vamos a uma suposição (digo, sedução) esclarecedora. Eu explico. Explico assim, devagarinho, como convém: “os humanos (é o seu caso), embora detentores de capacidades primitivas, funcionam como receptores de sinais ideias e pensamentos que processam através do sonho e da fantasia; eu (quem mais poderia ser?) vivo permanentemente a enviar-lhe sinais de mim; o seu destrambelhamento (como lhe chama) apenas revela a sua inata dificuldade em processar informação, ora tome lá uma ponta da minha manta de lã merina branca.". A manta não é dela, estou mesmo a sonhar, descansei-me, a manta é minha, minha, minha. Teimoso, percebi a voz dela distintamente, que teimoso, será que ele não entende que é na minha manta de lã (que mania a dele, a manta é minha, ciciou baixinho) que a minha flor de grandes lábios, a minha flor oculta de carne e cetim, se abre magnólia humedecida e rosada? Disfarcei a pergunta… A sua boca era uma coisa quente que se agarrava à minha boca e fazia dela o que queria. Não está cansado? Perguntou. Só mais um bocadinho, respondi. E ela num sorriso gémeo: está todo suado e espapaçado de calor, meu caro, ui esses seus tremores poéticos; será só do calor da minha manta de lã merina?... Acordei alagado em suor e escrevi num papel solto em letra preguiçosa e com música em fundo: "nunca imaginei que o amor se escondia numa manta de lã merina branca.".

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