Eu (que sou uma estrela) tenho uma costela syrah?
(Mensagem recebida)
Espero, meu caro, que esteja bem. Acabei de lhe
enviar uma “newsletter” com as últimas notícias fresquinhas sobre a mudança política em
Portugal. Pensei: uhm, ele vai achar
interessante. Algo mudou e já não volta atrás. Há uma qualquer alteração em
marcha sem retorno, pressinto, intuo com intensidade. Quem não acreditava que
engula a vaca, como se diz no Ribatejo marialva, quem não equacionou como solução
possível um entendimento dos partidos de esquerda, enganou-se. Aquele partido que
é o mais temido, lhe garanto que é o mais fiel e não "rói a corda",
deixou de ser o "papão" que come crianças ao pequeno almoço e dá mais
um sinal de evolução e de capacidade de cedência e abnegação em prol de um bem
maior que é lutar contra o capital. Extraordinário. Não menos extraordinário,
meu caro, é o facto (ademais sui generis,
como já é apanágio nos portugueses) que o partido catalisador de convergências
(nem que seja em denominadores mínimos, mas essenciais para governar ou
viabilizar um governo) e de uma nova união de partidos do espectro partidário à
esquerda seja precisamente o partido socialista, partido tradicionalmente do poder e
que governou em alternância mais ou menos regular com o partido social democrata. Incrível! Estranha
(não a qualifico de miserável por um triz e porque miserável é pouco) continua a ser a actuação do senhor
presidente da República que, com o seu discurso reassumiu as funções de líder
partidário (e reaccionário, radical e de pendor fascista e totalitário!), se
revelou como realmente é (deixou cair a máscara e retorceu bem o rosto, cheio
de raiva por mais de um milhão de portugueses) e (tacitamente) se demitiu do
cargo de mais alto magistrado da nação. Desrespeitou a todos os níveis a
Constituição que jurou cumprir e fazer cumprir: não exerceu o poder moderador
(ao contrário, foi dramático, patético e instigador de ódios e de divisões), nem o
poder de representação (só alguns cidadãos é que contam, os outros são
inconsistentes, seja, podem votar que eu deixo, desde que votem em mim ou em
quem eu mandar, senão não servem para nada). Temos um presidente, apenas presidente dos portugueses europeístas e eu (eu?!) não tinha dado por isso. Sabe, meu caro, cada vez mais me
convenço que estamos mesmo numa nova fase da luta de classes, e os portugueses
começaram a reagir a uma ofensiva do capital contra o trabalho como há muito
não se via (por cá e por esse mundo fora). Espero (sinceramente) que a esquerda governe ou que pelo menos se
mantenha unida no propósito que é travar o desrespeito pelo trabalho e por quem
trabalha, impedir o galope do empobrecimento premeditado de toda a população e
o esbulho que está a ser feito ao Estado, a favor de privados (numa acção de
descapitalização sem precedentes do erário público), isto é, a tudo o que é de
todos e foi construído com o dinheiro dos nossos impostos. Agora percebo muito
bem porque é que o meu pai insistiu comigo, tinha eu talvez uns quinze ou dezasseis
anos, para eu ler Alexandre Herculano, autor pelo qual mostrou já naquela
altura grande admiração. Dizia-me: “devias
ler Herculano, ele é sábio a relatar e a interpretar a história, lê para
saberes da vida”. Para grande pena do meu pai, não mostrei nenhuma
inclinação ou gosto pela escrita daquele grande pensador e escritor (caramba,
não é fácil ser-se Mestre nas duas funções, pensar bem e escrever melhor). Só
mais tarde me atrevi na aventura de tentar compreender Alexandre Herculano (teria
eu já mais de vinte anos), fui à estante da sala, peguei num dos livros de bom
papel, capa dura de couro castanho e letras douradas (já não se fazem livros
assim). Tenho pena, não me lembro de qual, mas recordo bem que os li todos de
seguida, com aquela sofreguidão de quem descobre de repente que já está
atrasado no tempo, onde é que eu tinha a cabeça para não ter dado importância a
isto! Meu caro, adoro aquele texto de Herculano que lhe enviei. E ainda bem
que ele provocou esta minha nova mensagem que saiu escorreita como um sopro de
fada, plim! Podemos (nós os dois) ter opiniões divergentes, mas eu sonho com a revolução da nova era
e com o primado da harmonia e da felicidade global planetária dos povos, com líderes
e políticos humildes e sérios que de empenhados só o estejam em trabalhar para
o bem comum. É pedir muito?... Pense sempre em mim e nunca se esqueça de pensar em mim.
Notinha de rodapé
Escolhi a imagem que lhe envio por duas razões. Uma, porque, desta vez, o quero cumprimentar com um beijo do tamanho dos universos. A outra, porque dei por mim a ouvir Jim Holt... O que é que eu penso do Jim Holt? Penso exactamente o mesmo (nem mais nem menos) o que a Sarah Bakeweel pensa, seja: "One evening in Oxford, Holt enjoys a fine meal and bottle of Australian shiraz, then strolls around feeling a diffuse sense of contentment". Deve ter bebido um pouquito a mais e ficou atoleimado, digo eu que nunca me engasgo. Efeitos, meu caro, da casta "syrah": os vinhos obtidos a partir desta casta de uva (ricos em taninos) são muito corados, de um vermelho intenso com nuances violetas na juventude; a intensidade corante é sempre muito persistente e o potencial aromático muito complexo: compostos florais, frutados e especiarias. Deixe que lhe diga ainda que a riqueza tanana, digo, tanínica, a pujança e a amplitude desses vinhos fazem deles vinhos para escolher, afagar, guardar, proteger e beber... Santo Deus, Senhor! Céus da minha meninice! Universos da minha juventude! Eu (que sou uma estrela) tenho uma costela syrah?
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