Vou ver o mar...

É sim, meu caro, é algo sim, sim é algo em que, há uns minutinhos alargados, matuto e matuto, e até já decidi falar consigo, sei lá eu bem se vai perceber, vida a minha; falaremos disso, é melhor, num outro dia (se for do seu agrado, talvez amanhã passado)… Mas já que o acordei, quero dizer-lhe que trasantontem vi (e revi e revi e revi) o comportamento dos chimpanzés do Frans (está recordado…, o pepino, as uvas, ah, pois…) e, imagine só, veio-me à cabeça um escrito-maneira que enviei ao Charles (o Charles Darwin, sim, esse mesmo) a propósito da teoria da evolução… Mas se ainda nada lhe perguntei, interrompi desconfiado com o discurso da única fada que aos domingos estuda e escreve direito em linhas tortas, como é que se dá ao luxo de me acordar com uma resposta-enigma a uma pergunta que eu não fiz, e porque é que fugiu a dizer o que matutava, desviando a conversa para um seu pretenso escrito sobre a teoria da evolução? Não me perguntou nada, respondeu, não me perguntou e nem precisava, sabe bem que adivinho os seus pensamentos, ou seja, em relação a mim ainda tem reflexos toscos, à Pavlov: sempre que soa uma campainha, os seus neurónios activam-se e imagina coisas e loisas… Adiante, arrisquei, deixemos o soar da campainha e a minha imaginação de lado, afinal sobre o que é que decidiu falar comigo, sempre quero ver se tem algo a ver com a resposta aos meus pensamentos… Nada, nada, atalhou atabalhoadamente enquanto apanhava o cabelo, fique-se por agora com o meu escrito (que é verdadeiro e não pretenso) para o Charles…; vou ler o meu escrito devagarinho mas antes tenho que me socorrer dos meus fabulásticos óculos de massa preta, aí o tem, bem pensado e bem escrito, como é meu timbre: “Querido Charles, tu nunca disseste que os humanos descendiam do macaco; se queres que te diga, não me parece ser mais indigno descender dos macacos do que do barro, porque sempre está por detrás da matéria-prima a mão de um Criador que eu bem conheço… Tu, Charles, sabes da minha fé católica; acredita que nunca tive dificuldade em conjugar a minha fé com a tua teoria, ou seja, sempre acreditei que Deus formou o corpo de um ser humano, não me admira que o cinzel que utilizou para lhe dar forma, possam ser as leis da evolução que Ele desenhou e que tu, Charles, descobriste na natureza: até penso (não precisas ficar tão vaidoso) que a tua teoria é um mecanismo de uma maravilhosa simplicidade e de uma lógica impecável…”. Interessante o seu escrito, muito interessante, atravessei-me no seu lento ler, muito interessante e dá pano para muitas mangas, mas tenho a certeza de que a campainha era verdadeira e que a minha imaginação não se enganou. Mal que lhe pergunte, atrevi-me, é bom sair de casa para arejar, no final de um domingo de Outubro em que anoiteceu mais cedo porque os relógios atrasaram uma hora nesse domingo, é muito bom, pois não é? Claro que é, meu caro, disse ela sem peias e olhos grandes a pesquisar-me de curiosidade aguçada (não me diga que me viu, nem quero acreditar que não me tenha dito um que linda…)…, é mesmo nesse meu arejar de final de domingo, continuou, que há uns minutinhos (e ainda agora) matuto e matuto…; mas sempre lhe antecipo que é bom ultrapassar os circuitos rotineiros, a cartografia sonolenta e supostamente confortável em que enclausuramos a vida, e o truque é aceitar o que nos apaixona porque as pessoas querem estar perto de quem tem energia; e sim, assumo que recorri, meu caro, ao meu escrito-maneira sobre a teoria da evolução, tão só por uma questão de sobrevivência, e agora?! Agora nada, reagi, logo também nada e amanhã passado não sei, sei lá, eu sei lá… Vou ver o mar, rematei, eu acho que toda a gente o devia ver uma vez por dia.

Adenda (nova mensagem)
Ouvi outra vez a música de piano em tom de bluee voltei a deliciar-me e a ficar mais calma (e hoje estou mesmo precisada disso). Suponho que saiu para ver o mar, fez bem, também gostaria de ter ido e de o acompanhar, especialmente para o acompanhar (com certeza não está em fase de eremita meditativo e cabisbaixo com a vida, pois não?). Adoro (insisto) a referência aos pássaros. Não sei de facto (e não aposto) se os pássaros agem de acordo com programas genéticos e instintivos, isso ainda não sei garantir. Gosto muito que os pássaros poisem no meu terraço e de os ouvir cantar de manhã cedinho, ao acordar. Levam-me a pensar em sonho e em fantasia e na capacidade de ver as coisas de outro lugar mais alto, a outra escala e com mais cores. Eles expressam a liberdade, a leveza e fazem-me querer ir mais além do que é esperado de mim. Pena é que nem sempre consiga, até uma fada tem limitações e cansaços, oh, pá… Sabe, meu querido poeta-pensador, na vida há coisas que expressam riqueza, mas há riquezas que não podem ser mensuradas: a generosidade da natureza e a generosidade dos sentimentos. O meu poeta-pensador tantas vezes me fez recordar a beleza generosa da natureza e me chamou a atenção para ela, o que tem ajudado a perfeiçoar os meus dons mágicos e curativos. Gosto de pensar também que o meu amor pela vida e pela natureza e até o meu amor pelo poeta-pensador (vá lá ruborize), ser tão especial e único para mim no contexto da criação e da evolução das espécies, foi plantado e cuidado, chegando agora a hora de começar a ser colhido. Eu que já sou uma grande fada, sou a geradora da grande riqueza: a energia fértil que faz o jardim dar rosas, essas flores místicas e perfumadas. E tenho na mão a chave (A "Chave de Salomão" do meu parente Rodrigues dos Santos, curiosa simbiose de apelidos..., essa ainda não a vi): a riqueza não é o objecto adquirido, mas a capacidade para a pessoa obter a riqueza. Dá que pensar, meu caro, dá que pensar. Ofereço-lhe, então, esta chave e se a aceitar..., até vamos ver o mar juntos, que tal?

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