Quanto me falta um solstício no cromeleque dos almendres

Estou muito admirada consigo, meu caro…, sussurrou-me, de óculos de massa preta a realçar o seu rosto lindo, a sempre fada única que não declina nos outros a tarefa de ceifar delícias em noite memorável de fados. Muito admirada porquê?! Não pude deixar de exclamar, desafiando-a. Se não reagiu à revelação (nem ao seu significado explícito) da minha presença no cromeleque dos almendres..., não lhe parece, perguntou-me, que devo estar muito admirada? Percebeu pelo menos, insistiu, a dose de magia, escondida nos círculos, nas elipses, nos rectângulos, nos semicírculos, em que o meu coração de vidro se diverte quando estou feliz? Foi nesse cromeleque que aprendi, íntima de mim, a plantar palavras, como sementes, debaixo e frente ao silêncio cúmplice das pedras-talhas, ouvindo em fundo os cantos matinais e isentos das aves minhas irmãs no tempo... Errada a sua forma de pensar, respondi. Errada porque quando eu escrevi "Hoje acordei com o sol a entrar pela janela", estava a tentar traduzir a alegria e o mistério do sol parado em solstício de verão num lugar de magia e de vida. Não dei por isso e nem ouvi aquilo que gostava de ter ouvido, interrompeu-me sem cerimónias. Sabe por acaso que foi nesse cromeleque (onde descobri a noção de natureza terrestre como uma rede orgânica densamente interligada - uma teia biosférica) que senti instintivamente o mundo, animado a falar dentro de mim na voz das pedras-talhas e das árvores, enquanto eu dormia aninhada em novelo como só os gatos gostam? Gostei da sua voz a perguntar como quem entorna mel... Quer abrir, pedi-lhe, uma janela de sabedoria para me explicar porque é que "sentiu instintivamente"? Nem me deixou terminar... Ajeitou a franja desfraldada, tirou os óculos e, com ar de quem sabe e de olhar nu, dissertou: "os instintos são comportamentos complexos e inatos que não têm que ser aprendidos e manifestam-se de uma forma mais ou menos independente da experiência". Demorei-me no seu aspecto fino e elegante. Ela fez que nem reparou mas, divertida, perguntou-me se eu não me importava de trazer à luz os meus instintos através de um pequeno exercício mental. Claro que sim, respondi..., talvez seja uma forma de eu contemplar a natureza oculta dos meus instintos. Fiquei sem pinga de fala e não consigo transmitir a alegria que ela despejava a rodos num sorriso-gago, quando me segredou em jeito de pergunta: porque é que eu lhe viro o juízo do avesso? Porque os instintos processam a informação de uma forma simples e automática..., não sei bem quem terá dito que regra geral temos menos consciência daquilo que as nossas mentes fazem melhor, respondi sem peias. Estou abismada consigo, soletrou as palavras..., está muito perto da verdade: a verdade, verdadinha, é que o seu cérebro foi minuciosamente configurado (na estrutura e nas funções) para se demorar em mim... Quanto me falta um solstício no cromeleque dos almendres!

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