A palavra inteligência não é uma palavra razoável
Essa
sua mania, meu caro, de sistematicamente dizer que sou inteligente, deixa-me os
nervos em franja (deixe de olhar para a minha franja; os nervos em franja são tão
só uma metáfora), disse interrompendo-me
a minha leitura (caía, naquele instante, sobre o poente o escuro), a mais adorada de todas as fadas do
mundo. Não percebo porquê! – Retorqui,
acrescentando que, na minha forma de pensar, a inteligência é compreender
facilmente, aprender sem dificuldade e agir com discernimento; e, ao mesmo tempo,
disse-lhe que aceitava que o conceito de inteligência pudesse ser considerado um conceito difícil de
precisar. Se eu percebi mesmo bem, respondeu olhando-me
fixamente, não sabe bem porque é que diz que sou inteligente; sou levada a
concluir que nada tenho a ver com o antónimo do seu conceito de inteligência; será
que poderei, sem me equivocar, dizer o mesmo de si? Penso que não. E riu-se, divertida e galhofeira, enquanto sugeria, de olhos muito abertos e pescoço ao alto, que eu ouvisse o longínquo murmúrio dos chocalhos. Gosto pouco, interrompi-a sem vontade de me rir, que, de uma forma subtil e intencional, tenha sugerido que o antónimo do meu conceito de
inteligência é burrice (e mais grave que isso, me tenha provocado de uma
forma tão deselegante); além do mais, a sua afirmação pode ser considerada uma indelicadeza
para com os burros que são animais bem interessantes; por exemplo, os burros de
Miranda do Douro são lanzudos, inteligentes e lindíssimos. Mas que sensível ele
está hoje! – Suspirou ela com um nervoso miudinho na voz. Meu caro, disse
pausadamente, apenas quis dizer que é muito vaga a noção popular de inteligência;
sei perfeitamente que quando diz que eu sou inteligente quer dizer que tenho
espírito, que sou sensível, que tenho comigo o egoísmo natural das flores e dos rios que seguem o seu caminho e que concentro em mim, à vista de todos, as
múltiplas inteligências elencadas por Howard Gardner; com quem, para que conste, adorei falar variadíssimas vezes sobre este assunto. Recordo-me de ele me ter dito que,
perante o carácter vago do conceito de inteligência, não nos devemos
surpreender que se tenha tentado avaliar cientificamente a inteligência
(lembre-se dos testes desenvolvidos por Alfred Binet e de Théodore Simon no
início do século passado). Aceita um conselho meu? Não se esqueça nunca que os humanos têm uma tendência
para medir o que não conseguem apreender (retirei esta certeza de uma pequenina e íntima conversa com Fernando Pessoa que me soprou em segredo que a vida é breve, a alma é vasta e ter é tardar). Uma vez que sabe tudo e conhece e priva com tanta gente importante e sábia, deixe, interrompi-a, que lhe pergunte se a
inteligência é uma característica hereditária ou é apenas decorrente de vários factores ambientais - a cultura, a educação e origem social - ou de défices
orgânicos de origem genética demonstrada. Ainda eu não tinha acabado de fazer a
pergunta, já ela me garantia que não entrava nesse tipo de debate por ser um
debate politicamente incorrecto e cientificamente não pertinente. Imagine, confidenciou-me, que Alfred Binet e eu
quase chegamos a vias de facto, porque eu o afrontei, dizendo-lhe que os seus
testes para medir a inteligência não tinham fiabilidade porque ignoravam o que
chamo o aspecto poético do ser, a sensibilidade emocional, a cultura íntima, as
inibições e os pudores. Claro que não sabe, insistiu, porque passa a vida a pensar
apenas com antónimos. Outra vez? Nova provocação?- Perguntei deveras irritado. Não, claro que não é mais uma provocação, respondeu. Por nada deste mundo pense
que lhe chamei antónimo do que quer que seja (embora sem saber bem porquê, me esteja a lembrar agora dos burros de Miranda do Douro); apenas lhe quero reiterar que a
palavra inteligência não é uma palavra razoável. Atente que, não sendo uma palavra razoável, até pode gerar
confusão em mentes que desconhecem que Charles Sperman propôs que se utilizasse
um factor g (para geral), uma espécie
de denominador comum da inteligência. Não penso que a sua mente seja uma dessas (longe de mim pensar isso por um segundo sequer!); mas que não ponho as mãos no lume por si, isso não ponho. E sabe porquê? Porque ainda não percebeu ainda que não só vive sempre no meu coração quanto não há lugar nem dia para quem quer achar. Depois de a ouvir, pensei que só um púcaro de vinho refresca, sobriamente, as saudades de uma fada. Tenho a certeza que a minha fada (as fadas são fadas porque não se pensam e são felizes porque também vivem a vida calma das raízes) é uma flor acima do dilúvio da inteligência subjectiva. Até a ausência dela é uma coisa que está sempre, todos os dias e a toda a hora comigo, que sorte a minha. Quem quer dizer o que sente, não sabe o que há-de dizer! Ponto.
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