Salvaguarda do Património Cultural
Portugal, a caminho dos seus nove séculos de existência é, como seria de esperar, fruto de um longo processo histórico durante o qual se construiu, com base num passado comum, uma identidade nacional própria.
Um passado feito das memórias de um condado que se fez reino e de um rei guerreiro que lançou as bases do futuro país. Mas o país é construído sobre um território com um passado próprio, com as suas próprias memórias.
Embora muitas vezes essas memórias sejam remetidas genericamente para o “tempo dos romanos” ou o “tempo dos mouros”, ele vai muito para além disso. Vai também além de um passado monumental de castelos, palácios, mosteiros e igrejas, refletindo-se também em vestígios menos visível de um mundo antigo que se encontra muitas vezes escondido no subsolo.
É aí que encontramos os utensílios talhados na pedra que nos dão conta da ocupação deste espaço pelos nossos antepassados mais antigos, há cerca de 400.000 anos, durante o Paleolítico Inferior.
Vestígios de um tempo de caçadores-recolectores, em que o Homem circulava pelo território caçando, pescando e recolhendo alimentos. Território onde, uns milhares de anos depois, durante o Paleolítico Superior, vão surgir as primeiras manifestações artísticas do homem em território nacional. Aqui destaca-se a arte rupestre do Vale do Côa, com vestígios que remontam a 20.000 atrás e classificada como património mundial.
Com o passar do tempo e o incremento da agricultura e da pastorícia, os grupos de caçadoresrecolectores vão-se sedentarizando e alterando a sua organização e modos de vida. Chegamos ao Neolítico, entre os finais do 6.º e inícios do 5.º milénio a.C.. São estas comunidades, que já produzem cerâmica e vão construir monumentos megalíticos como as antas, cromeleques e menires, que nos remetem para o mundo da morte e para um mundo espiritual que desconhecemos. Embora se dispersem pelo território, são de destacar as elevadas concentrações de monumentos verificadas no Alentejo, em especial nos concelhos de Évora e Reguengos de Monsaraz.
Com a transição para o 3.º milénio a.C., no Calcolítico, dão-se novas transformações para as quais muito contribuiu o domínio da metalurgia, neste caso o cobre, que conduziu à criação de novos instrumentos. As comunidades intensificam os contactos de longa distância, com o Mediterrâneo. São deste período inúmeros povoados fortificados, recintos de fossos e estruturas funerárias (hipogeus; tholos; etc) espalhados pelo território.
Na passagem para o 2.º milénio a.C., com a Idade do Bronze, verificam-se novas mudanças, com o abandono da arquitetura monumental dos povoados fortificados e o surgimento da metalurgia do bronze, com a produção de espadas, punhais, lanças e machados. Surgem também novas praticas funerárias (cistas individuais) que vêm sublinhar um papel cada vez mais centrado no individuo, denotando claras alterações sociais.
No final do 2.º milénio o paradigma da ocupação do território volta a mudar e intensifica-se o povoamento centrado em povoados de altura. No início do 1.º milénio a.C., com a Idade do Ferro, verificam-se novas mudanças, que se devem em grande parte às influências que aqui chegam de outras paragens. Se o território mais a norte se destaca pelos típicos castros, bem defendidos e localizados em pontos de destaque, o Sul caracteriza-se pelas marcadas influências orientalizantes, fruto do contacto com o mediterrâneo.
Com a chegada dos romanos a estas paragens, no séc. II a.C., inicia-se uma nova etapa na história do território, marcado claramente na memória coletiva. O tempo das origens mais remotas do país, e daqueles que, como Viriato, afincadamente tentaram defender o território dos invasores.
A chegada dos romanos teve efetivamente um grande impacto nas populações locais. As alterações seriam enormes, a níveis tão distintos como a arquitetura, a organização administrativa, os hábitos alimentares, a exploração dos recursos naturais, a engenharia, a língua, a religião ou o urbanismo.
Nada voltaria a ser como antes. Deste período permanecem dispersos por todo o território um vasto conjunto de vestígios, que pela sua abundância deixam uma marca clara no coletivo nacional. Sejam vestígios monumentais, como as ruínas de Conímbriga, o templo de Évora ou a ponte romana de Chaves. Sejam vestígios de pequenos casais rurais dedicados à exploração agrícola ou de vias que cruzam o território.
Mas os grandes impérios também chegam ao fim. Com o declínio de Roma, entre finais do séc. IV e início do séc. V, a par com a progressiva cristianização das populações e a chegada à Península Ibérica de vários povos oriundos da Europa Central (Suevos, Visigodos e outros), inicia-se uma nova fase, com a criação de novos reinos. Estamos agora num mundo de relações complexas, com múltiplas realidades a conviver num mesmo espaço geográfico, mas onde não se verifica uma rutura abrupta nos modos de vida das populações que aqui residem.
Novas mudanças viriam alguns séculos mais tarde com a chegada à Península Ibérica, em 711 d.C., de um conjunto de forças muçulmanas que iriam facilmente ocupar um território política e militarmente fragmentado. Estamos perante uma nova cultura que embora traga ruturas e mudanças, mantém também áreas de continuidade. Deste período ficou uma herança que se reflete ainda hoje, nas práticas agrícolas, na arquitetura, na língua, na toponímia ou na culinária. Esta herança muçulmana é claramente mais forte no sul de Portugal, sendo visível, por exemplo, nas muralhas de Silves e de Alcácer do Sal ou nos diversos vestígios islâmicos de Mértola.
A par da presença islâmica mais a sul surge a norte do atual território nacional o Condado Portucalense. No séc. XII, sob a direção de D. Afonso Henriques os seus territórios vão-se expandindo para sul, conquistados às forças muçulmanas. Foi uma longa história de avanços e recuos, de vitórias e derrotas, num processo que seria continuado pelos seus sucessores.
Inicia-se aqui um novo período, o da nacionalidade. Quase novecentos anos de país materializados nos mais diversos vestígios espalhados pelo território: castelos, palácios, igrejas, ermidas, moinhos e tantos outros.
Patrimónios que nos remetem para tempos antigos, mas que também refletem memórias de épocas mais recentes. Memórias de moinhos que moíam os cereais com que se fazia o pão no tempo dos nossos avós. Fontes onde se ia à água fresca. Alminhas que ainda marcam o território. Ermidas que anunciam o local de um milagre. Patrimónios diversos ligados a um passado recente que a oralidade mantém na memória e que reforçam a identidade coletiva das povoações. Patrimónios aos quais está associada uma forte ligação afetiva e cuja preservação urge garantir.
Mas falamos também de patrimónios ditos imateriais, ligados a costumes e tradições. As músicas tradicionais, os cantares, as danças, as festas e romarias, as artes e saberes associados às atividades do dia a dia de cada região. Patrimónios como a Capeia Arraiana (Sabugal), a confeção de louça preta de Bisalhães (Vila Real), a produção de figurado em barro de Estremoz (Estremoz), a festa de carnaval dos Caretos de Podence (Macedo de Cavaleiros), a arte-xávega na Costa da Caparica (Costa da Caparica, Almada), o culto a Nossa Senhora da Piedade de Loulé, o Fado ou o Cante Alentejano.
Patrimónios que marcam a cultura de um povo e que reforçam a identidade nacional, bem como as diversas identidades regionais e locais.
Temos assim diversas ordens de vestígios patrimoniais. Sejam aqueles que nos remetem para a memória de um país, jovem de nove séculos, sejam os que nos lembram um passado comum mais vasto de milhares de anos. Vestígios a que o território incute particularidades diversas, fruto de contextos históricos singulares ou de especificidades geográficas próprias, relacionadas com a sua geologia, orografia ou hidrografia.
Se os monumentos megalíticos neolíticos são em maior número no sul, o castros da Idade do Ferro marcam a paisagem do Minho e Trás-os-Montes. Se a herança islâmica marca mais o sul, as igrejas românicas marcam mais o norte. Se em algumas zonas o granito é o material de construção por excelência noutras é o xisto. As especificidades de cada região, de cada lugar, vão determinar as características do seu viver e por consequência dos seus patrimónios.
Patrimónios estes cujos vestígios físicos se encontram presentes em todo o território, uns conhecidos e visíveis, outros ainda escondidos do olhar coletivo. É este património que é necessário preservar enquanto memória coletiva de um passado comum. Preservação esta que deve ser acautelada aquando do desenvolvimento de projetos cuja implantação irá provocar impactes sobre o território onde esse património subsiste.
A preservação do património cultural comum revela-se particularmente relevante quando falamos de projetos associados à implementação de regadios. Tal deve-se ao facto de estes projetos atuarem sobre um território abrangente, com infraestruturas que se espalham tentacularmente sobre a área a beneficiar. Condutas, canais, reservatórios e demais infraestruturas espalhadas por um território a beneficiar, que vai também ele sofrer transformações profundas, fruto das alterações provocadas por novas dinâmicas agrícolas.
Neste sentido, os projetos a desenvolver deverão acautelar a preservação dos vestígios patrimoniais existentes, conhecidos ou não. Por um lado, utilizando a informação existente ainda em fase de seleção de áreas e elaboração de projeto e por outro prevendo a sua eventual deteção e preservação em fase de execução de obra.
A análise efetuada teve por base a consulta das seguintes de bases de dados da Direção-Geral do Património Cultural (DGPC):
- “Endovélico - Sistema de Informação e Gestão Arqueológica”, onde se encontra a informação relativa aos sítios arqueológicos registados a nível nacional. Esta base de dados online foi consultada no mês de maio de 2021.
- “Atlas do património classificado e em vias de classificação”, onde se encontra armazenada informação geográfica sobre património classificado e em vias de classificação e respetivas áreas de proteção. O “Atlas” online foi consultado em junho de 2021.
Texto retirado daqui (pp 105 a 108).
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