As palavras não têm preço
(Mensagem recebida)
Galula,
meu caro admirador das minhas formas únicas, foi mesmo galula, mesmo! Dei de caras (no fim de um dia soalheiro em que estava na mó de baixo), digo, estampei-me ao comprido num dicionário de palavras supimpas (uma compilação de vocábulos, compilação, Santo Deus, Jesus, Maria, José, Vida) e tropecei numa gargalhada gaguejada, que se divertia,
dizendo-me que tinha arrebatado cisquinhos de verão e que os tinha escondido.
Bah, retorqui-lhe, ainda Setembro vai menino mas já está mingado de mim, rododentros o digam, xô! Não se
deu por achada, e: bem que lhe digo,
princesa de brincos de cereja (uma gargalhada a chamar-me princesa, pode lá
ser!), guardo comigo, insistiu ela divertida, guardo comigo um niquinho de
zumbidos de cigarras, formigas, libelinhas, grilos, sapos-conchos e rãs. Adiante,
meu caro admirador de mim inteirinha, adiante, deixemos a gaita, digo, a gaiata gargalhada com
o seu baú dos dias (que não são do tempo comum) e vamos ao que interessa.
Folhei, digo, folheei (cada tiro cada melro) o tal dicionário e pensava eu encontrar um laburdo de palavras, muitas e
variadas, nanja, nem rabos de palha. Nada disso, não me convencem, meu adorado admirador, então não é que ainda ontem
jantei uns talinhos da nó (espargos selvagens, isso mesmo, espargos selvagens enrolados em farinha) a acompanhar um chicharro
do mar assado em carvão de azinho? Como é que correu o jantar? Bem, estava lá um falcato manhoso (raios e
coriscos, acudam!) mas nem lhe digo e nem lhe conto. Claro que conto, claro que digo. Afirmei eu, com aquele meu ar de adiantada mental que bem conhece: o Kant dizia
que o espaço nos permite perceber a realidade exterior e o tempo nos permite
conhecer a nossa realidade interior. Isso, disparou o tal de falcato (uma
abécula manhosa, aqui para nós que ninguém nos lê, abécula a fazer-se ao piso); isso mesmo, trauteou de
boca cheia (que feio é falar com a boca cheia): o Kant é património imaterial e é alentejano. Ui a minha azedia, meu
caro, a minha azedia à asneirice repimpada, até o meu coração felino me fraquejou; e eu, polímata, zurzi nele até mais não. Óbvio,
acalme-se, não se excite e ponha os seus ciúmes de lado, eu sei, eu sei que tenho que dar o devido desconto, mas confundir Kant com cante, vou
ali e já volto, até os meus olhos grandes ganharam a fixidez dos de pantera: grande falcato esgueirento (só paleio, salamaleques e inchado de prosápia), apeteceu-me escaqueirá-lo com palavras frias como o mármore e pitadas de cinismo, que fastio, basbaque, bimbas, trampolineiro. Adiante que o dia me chama. Mas, como ainda não guardei a doçura espessa e macerada dos
pêssegos e o sabor das amoras das empoleiradas silvas, bem que (juntos e aninhados) poderíamos folhear o
dicionário de palavras supimpas...
É sempre com sobressalto que escrevo qualquer coisa ao Luís Silveira, pois que sempre me atira com cada naco de prosa que fico com os olhos em bico... de inveja!
ResponderEliminarObrigado grande escritor beirão.
João Dias