Antifado chamado Portugal

“Profeta do ser português”, Agostinho da Silva auto-exilou-se durante vinte e cinco anos no Brasil, sem nunca deixar de pensar o seu país natal… Olhando e fazendo a história de Portugal, por exemplo, assim:

Que mau jeito teve o moço
testarudo e de mão brava
de se opor a sua mãe
que amava o Conde de Trava
sem perceber que o fazendo
punha o Minho de fronteira
entre nós os portugueses
e Galiza a companheira
pela qual o nosso amor
jamais se desmentirá
e decerto a qualquer hora
algum jeito se dará
já que a flor do verde pinho
na língua deles se chora
pelo que o jovem pôs fora
gratos porém para sempre
porque nos deu Santarém
ousou armar-se em Zamora
e nos postou sobre o Tejo
que já ia mar em fora
enquanto o rei repetia
o que não se teve um dia
se terá em qualquer hora
depois os filhos e os netos
muitos Sanchos muitos Afonsos
talharam-nos Portugal
menos ternos do que intonsos
a bom ferro e bom foral
felizmente o Lavrador
pôde parar na função
compor jardim defendê-lo
a leste com pedra e cal
para oeste sobre o mar
com muralhas de pinhal
e com tempo de pensar
e cuidar de haver marinha
nos arranjando o Peçanha
que muito século após
em sua directa linha
o Poeta de Macau
nos dava em onda final
com sua irisada espuma
da fala de Portugal
poeta sendo também
o nosso rei D. Dinis
em seu paço de Lisboa
ou seu castelo do Lis
com as palavras domadas
mas as paixões em tropel
fazendo à força bem santa
sua rainha Isabel
e o povo solto nas festas
da criança imperador
e dos banquetes sem paga
e sem prisões do terror
mas quis Deus pairar de novo
por sobre as águas do mar
para que o mundo criado
se viesse recriar
no se conhecerem homens
dum lado a outro da terra
e transformou o jardim
em cais do sonho que encerra
a mente que Deus é todo
mas tem o mar vida e morte
mas tem o mar vaga e lodo
e nos coube a nós a sorte
a glória ganhar vogando
para encontrarmos em terra
toda a tristeza penando
sempre as lágrimas de Inês
sem o Cru e sua fúria
sempre o brilho das estrelas
velado por nossa incúria
teve que vir quarto Afonso
teve que vir duro Infante
teve que vir D. João
de lua em quarto minguante
para que aos pães milagrosos
da boda em longe profundo
replicasse Portugal
multiplicado no mundo
e a Deus servindo que só
ainda que muito possa
tanto Povo não criava
sem a força que é a nossa
e bem o soube em seu tempo
tempo de sonho e de lida
Camões que levou a vida
por entre visões e dores
quando nos fez deuses gregos
em suas ilhas de amores
mas rolou ano após ano
sem haver aurora nova
um cume se levantava
logo passava a ser cova
noites e noites de borco
só a lama nunca o pé
pisando o solo a subir
que nos prometia a fé
quanta lágrima chorada
quanto esforço desprezado
quanta ideia feita nada
quanto peito destroçado
por toda a parte lembranças
sombra só das esperanças
e foi tudo Afonso Quarto
com heterónimos vários
até que em setenta e quatro
sopraram ventos contrários
mesmo a si próprios contrários
em turbilhão de começo
de mundo a se construir
coitados dos inocentes
julgando nos confundir
como se ninguém soubesse
o navegar de bolina
o de obrigar o que é contra
a servir a nossa sina
mão no leme companheiros
olho ao rumo almas ao tudo
a vida é nossa é moldá-la
não me iludas não te iludo 
sejamos os servidores
do Deus que está dentro de nós
a centelha imorredoura
do divino em mim e vós
e que nos leva a cantar
nosso canto de vitória
todo invenção e memória
entre tanta confusão
Vieira não te enganaste
e vai agora romper
a madrugada real
do sonho que tu sonhaste
e sonhou quem te sonhou
semente de universal
que ao universo tomou
mas dentro em si repartida
em tanto ser que nós somos
e só por medo estreiteza
o ser que somos não somos.

19.2.87
Agostinho da Silva

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