A manta não é dela, que raiva!

Eu sabia, claro que eu sabia, recorda-se de lhe ter dito que a sua intuição estava certa, recorda-se? Percebi. A única fada que quando está preocupada dorme pouco e mal, faz pesquisas de saberes história adentro, e perde as estribeiras sempre que descobre algo de novo… Tenha dó, atirei, tenha dó, creio nem ainda comecei a dormir e já me atasana? Diga depressa o que descobriu e, por favor, deixe-me dormir pelo menos três horitas, três horitas que sejam…, ah, e esta manta de lã merina branca é minha, nada de a surripiar de novo como já é seu hábito, useiro e vezeiro. Atasana?! Disse atasana?! Oh, meu caro, ripostou, enquanto ensaiava um rodopio curvilíneo e ao de leve; gosto, gosto, gosto de o atasanar a si e à vida, ai gosto, gosto. Adiante… Recorda-se de me ter dito que a amnésia infantil começa aos sete anos de idade e me ter pedido para eu pensar no que tal poderia significar? Sim, respondi, recordo, disse-me que tinha algo a ver com a ausência de memória autobiográfica nos primeiros anos de vida… Ei, ei, ei, suspirou em risinho solto, tape-se, cubra-se, tome lá a sua pequena metade da manta… Obrigado, agradeci e tapei-me… Só agora, meu caro, percebi, trauteou, os interessantes efeitos secundários do meu atasanar, ai como eu me divirto com essa sua tendinha de índio, toda empinada ao alto… Onde é que eu ia, continuou, sei, já sei, ia já sugerir-lhe que a consulta do “fragmento 27 W” (idades da vida) de Sólon…; ainda estou a traduzi-lo do grego (línguas clássicas são para mim divertimentos de café...), mas pense um pouco nas primeiras linhas do poema: “…a criança, menino ainda de tenra idade, a barreira dos dentes que lhe nascera muda pela primeira vez em sete anos; (no segundo) quando a divindade leva ao seu termo um novo ciclo de sete anos, revelam-se os indícios da puberdade a despontar; (no terceiro) quando os membros crescem muda-se a flor da pele; no quarto ciclo de sete anos atinge o cume…”. Está a dizer-me que devo, alvitrei, que devo seguir a pista das idades de vida e que os primeiros sete anos de um ser humano existem para justificar a liberdade e a criatividade da vida para atingir o máximo de ser? Sim, pode ser mais ou menos, lá foi ela gaguejando e sem conseguir conter o riso… Olhe que, arriscou um ar sério, o poema de Sólon (fragmento 27W), tal como foi transmitido pelas fontes, não apresenta qualquer introdução a uma divisão da vida por fases de sete anos, pelo que o primeiro dístico passa imediatamente à época em que a criança muda os dentes e sem referência ao nascimento: atente, no entanto, que a identificação da primeira hebdómada aparece no final… A primeira quê?!  A primeira quê?! Hebdómada?! Perguntei. Oh, oh, meu caro, ciciou, hebdómada é um ciclo de vida de sete dias, de sete meses ou de sete anos...; mas, bem que lhe pergunte, o que é que está a acontecer ao pico mais alto da sua tendinha de índio?! Choveu?! Bem que o atasanei pois não atasanei, ai atasanei, atasanei! Sou assim, oh vida a minha! Que bem aqui agora a mim se aplica o nome índio que a minha avó me deu, "Olhos grandes bogalhados"! Oh, minha rica manta de lã merina branca!... A manta não é dela, que raiva!

Adenda (mensagem recebida)
Vamos lá falar de atasanamento… Não percebe o que significa? Pois eu explico. Atasanar também é (pode e também deve ser) o que ata. É apenas uma questão de perspectiva. Compreendeu? Não compreendeu, vida a minha… E ata (Jesus, Santo Deus, não é a ata da acta, está bem? Ai, o desastrado acordo ortográfico...) é sinónimo de união, de laço ou nó (nó de nós, pois claro...). Então, sendo assim, o que atasana também une. Por isso é que lhe faço o favor de partilhar consigo o meu grande saber das coisas, e sempre faço o favor de lhe emprestar uma parte da manta de lã merina (não se queixe que seja a metade mais pequena da manta, porque a minha unidade de medida de fada não é coincidente com a sua, usualmente utilizada por comuns mortais, ora essa!). O que interessa é que entre nós (plural de nó…) não vigora o preceito tão em voga por estes tempos do "nem ata nem desata". Por falar em ata, cuidei de perceber o motivo da altivez da tenda de índio. Reparando bem, é uma tenda bem armada e de cordas bem esticadas, o que muito se deve ao entrosamento bem feito entre os pontos e os nós que os unem. Fiz-me entender? Não?! Outra vez? Vida a minha! O meu amigo poeta-pensador está amnésico! Pois não me explicou tão bem o funcionamento das cordas e me fez sentir a vibração das mesmas? Amnésica eu não estou, e acabei agorinha mesmo de me lembrar da Teoria das Cordas do meu grande amigo Michio, o físico e patinador. Lembra-se dele? Olhe, o meu telefone está a tocar, quem será, será, será o Michio?! Que atasanamento, que calores, vida a minha!

Comentários

  1. Deste frenesim, parte visível da inquietação interior, nasce a ordem caótica, condição essencial a quem ama a vida.

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