Eu conto-lhe como foi
Eu conto-lhe como foi,
meu caro…, acordou-me, ainda a minha memória de trabalho dormia a sono solto, a
sempre e única fada que gosta de fazer surpresas. Conta-me como foi, perguntei ensonado, sem eu lhe ter
perguntado nada, nadinha de nada? Nem precisa, bichanou em siamês perfeito no meu ouvido esquerdo; ouça o que me aconteceu e esteja caladinho. Decidi alcantilar-me, continuou em tom melífluo, a
um monte-talefe para olhar o horizonte em roda e fazer uns rabiscos (sabe que rabiscar é um hábito que me
acompanha desde fada-menina, pois não sabe?), e foi então que a vi. Pousada numa pétala de flor amarela no
casco acolhedor e carcomido de um castanheiro centenário (onde a flor tinha arrendado
casa), ali estava ela, pequenina, sacudida pelo vento e absolutamente concentrada.
Ali estava, meu adorado dorminhoco, uma abelha. Uma abelha?! Não me diga, questionei-a sorrindo, que desta vez sobrou para
si uma ferroada a sério; se assim foi, está contada a sua estória e não se fala mais nisso; agora não tenho mais tempo, preciso de dormir, desculpe. Deixe-se
de gracinhas tolas, interrompeu-me, e
oiça com atenção porque quem precisa de duas ferroadas bem dadas, sei eu. Então não é que a abelha, linda e em bailado de animação e em movimentos instintivamente comandados, falou comigo? E, espanto dos espantos,
falou com a minha voz (ouvia-me a mim, meu caro, imagine!), e disse-me: “Ah quem me dera ir-me” de volta para o cortiço! Parvo como sou (e com a memória de trabalho fundida), dei por mim
a acreditar, a seguir-lhe a narrativa e a perguntar-lhe como foi o fim da conversa dela com aquela abelha tão saudosa do seu cortiço. Riu-se de vontade desprendida, e sussurrou-me de
olhos piscos, ironia breve e franja carregada de sentidos: se tiver tempo (muito e muito tempo) para mim, eu
conto-lhe como foi!
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