O meu tempo é muito mais que uma sucessão de agoras, veja se entende!
Essa sua inusitada
atenção aos manuscritos do Albert Einstein ((que eu bem conheci quando ele andava
desnorteado em Berna; coitado, perdido na vida (a sorte que ele teve em me conhecer!) lia patentes e só patentes)), deixa-me com uma
pulga atrás da orelha, soprou-me ao
de leve a sempre minha fada guicha. Com pulgas atrás da orelha fico eu, respondi sem pensar, com a sua abusiva e intempestiva intromissão
na minha pesquisa…; ao mesmo tempo que lhe respondia, fixava o seu aspecto altivo e arrumadinho: elegante (o que já não é
novidade), sandálias-cobra, blusa preta um pouco vaporosa e levemente cintada
mas discreta; franja alterada e o cabelo um pouco mais comprido e com risco ao
meio (anos setenta); curvas suaves e ondulantes; rosto lindo e afogueado; mãos soltas e livres. Já admirou tudo em mim, gosta mesmo? – Perguntou de supetão. Fiz que não a ouvi e perguntei-lhe se não pensava que as revelações
matemáticas de Einstein pouco tinham feito para pôr em causa a hipótese
kantiana de que o espaço e o tempo separáveis, eram formas necessárias e
inevitáveis de toda a percepção normal. Que admirada eu estou consigo, ouvi-a exclamar. Tem razão, continuou, de facto assim foi e por uma
razão simples, ou seja, embora o continuum
unitário “espaço-tempo” fosse preponderantemente no interior da ordem conceptual da física da relatividade, a
nossa experiência directa, perceptual, era assumida como estando estruturada de
acordo com as dimensões separáveis do tempo e do espaço. E já não é assim? – Questionei-a, enquanto a apreciava de novo, discretamente, de cima abaixo.
Ruborizada ao de leve, em jeito de romã menina e com ar cúmplice de ironia sabida, sugeriu-me que eu estudasse três fenomenólogos – Husserl, Heidegger e Merleau-Ponty – porque cada um deles,
no decurso das suas investigações, suspeitou que o espaço convencional entre
espaço e tempo era insustentável do ponto de vista da experiência directa e
pré-conceptual. Meu caro, concluiu, o
tempo e o espaço nunca estiveram separados um do outro; prova que assim é, foi a
sua recente (e trôpega com é costume) aproximação a um reino experiencial mais originário do que o espaço e o
tempo, de onde essas duas dimensões foram derivadas. O meu espanto era total e, com voz trémula e algo confuso, interrogava-me a mim próprio, tentando saber que tipo de aproximação recente eu tinha
feito a “um reino experiencial mais originário do que o espaço e o tempo”, quando ela me segredou de mansinho: caríssimo,
a forma como, há minutos, me olhou discreta mas fixamente, foi a sua recente aproximação a um reino experiencial
mais originário...., porque eu sou visível e invisível, eu sou alma e corpo, eu sou espírito e carne, eu sou desejo e concretização.... Eu sou a silenciosa reciprocidade do espaço e do tempo, eu sou um talismã para quem luta para juntar mente e corpo para readquirir uma genuína consciência do presente; a propósito, deixe que lhe recorde uma citação de Merleau-Ponty: "É o corpo que mostra e que fala... Esta revelação estende-se a todo o mundo sensível, e o nosso olhar, incitado pela experiência do corpo, descobrirá nos outros o milagre da expressão"... O meu tempo, rematou de olhos-lince acesos e brilhantes, é muito mais que uma sucessão de agoras, veja se entende!
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