Poema do coração bonito

Cheguei a casa, meu caro, e tive uma surpresa: os seus amores-perfeitos, que estão no terraço, floriram outra vez! Não é bonito?! – Interrompeu-me a tradução (que eu fazia concentrado) de um fragmento poético de Sólon, a sempre fada única (sem pedir licença e sem cerimónia) escondendo preces e de franja à banda. Ainda eu estava a tentar uma resposta compatível com a  sua intempestiva interrupção, quando ela, olhando por cima do meu ombro (que perfume tão agradável, que pele de seda!), me sussurrou ao ouvido que Sólon foi um jurista de se lhe tirar o chapéu. De se lhe tirar o chapéu? – Ouvi-me a perguntar. Tirar o chapéu é um sinal de respeito, de justiça e de admiração, não seja ignorante, explicou-me ela de imediato e perguntando-me qual seria o poema mais bonito que Sólon tinha escrito. Conheço, respondi sem muita segurança, apenas alguns dos seus fragmentos poéticos, mas sei que Sólon é sobretudo um poeta elegíaco; e a elegia é uma intersecção entre a poesia arcaica e a política, mediante a denominada política de exortação ou a parainesis, sustentada numa sólida função cívica. Meu apaixonado irresoluto, questionou-me com olhos de mel coado, deixe-se de conversas meio atrapalhadas no dizer; eu apenas queria saber se Sólon escreveu algum poema do coração bonito porque hoje me apetece uma hora (pelo menos uma hora) de loucura, de alegria e de atalhos sem sinalização. Sabia, continuou, que um poema do coração bonito, é um poema lateral aos sentidos que tem o formato ébrio de um corpo reclinado num peito e que se orienta pelo bater descompassado de outro coração aflito? A bebedeira de felicidade dos seus amores-perfeitos que perderam o medo e floriram para aceitar o destino, tem que ter uma explicação convincente, que lhe parece?- Rematou. Parece-me, disse eu medindo as palavras, que a sua forma de fazer perguntas nasce do seu coração bonito; e agora deixei de ter dúvidas: disse que eram meus os seus amores-perfeitos (que floriram outra vez), porque a sua elegante e nobre forma de estar na vida é um poema do seu coração bonito. Transcrevo-lhe (os olhos grandes dela, expectantes, iluminavam tudo à volta) um poeminha que encontrei guardado num centenário e maneirinho baú de cerejeira (já pensei que possa ser um fragmento de um apócrifo Cântico dos Cânticos inspirado numa mulher bonita de coração); assim se manifesta e se diz em voz-escrita: 
"Por ti arrisco tudo com prazer.
Tu e eu
possuir-nos-emos.
Eu e tu
esgotar-nos-emos.
Assim foi decidido acontecer!".
Adorei, adorei, adorei outra vez, suspirou ela com duas romãs-meninas emolduradas no rosto iluminado e espreitando sensações... Venha ver-me hoje ao fim do dia, espero por si!

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