As abelhas são demasiado razoáveis
Não concordo com o título que escolheu para este seu texto, exclamou com
ar enfurecido a minha fada preferida. E não concordo por mais que uma razão, é
óbvio; mas há uma razão que me deixa com a franja desfraldada ao vento: eu tenho um fraquinho pela abelha maia e vou
aos arames sempre que beliscam as abelhas. Admito com relutância, continuou dizendo, que as abelhas possam
ser consideradas gagas mentais, porque nunca se desviam dos imperativos ditados
pela espécie pois não conhecem a paixão; por exemplo, elas não conhecem a luz
do sol que não erra, que é comum e que é boa (esta seria uma longa conversa que agora
não quero ter consigo; eu tenho tanto sentimento que por vezes até me convenço que sou sentimental). Essa sua forma precipitada de me interromper, retorqui-lhe,
deixa-me a cabeça à roda, a modos que como quando perdi uma medalha que guardava
com todo o carinho e que desapareceu; nem sei se lhe respondo ou se mudo a conversa
e lhe falo da medalha. Opto por lhe responder porque a medalha aparece um dia
destes (devo ter-me esquecido que a mudei de lugar por uma qualquer razão). O
seu discurso são redondilhas e redondilhas, sempre redondilhas que me fazem
espirrar até à metafísica, exclamou
com ar atrevido, pescoço alto e cabelo apanhado! – Diga lá (se for capaz, o que duvido), de forma
simples, porque é que as abelhas são demasiado razoáveis. As abelhas são demasiado
razoáveis, respondi, porque apenas
utilizam estratégias de acção fixadas pelos seus programas genéticos, são uma
espécie de autómatos; e se, na sua opinião, um autómato é um sinónimo de gago mental
tudo bem. Ficamos por aqui e não se fala mais neste assunto. Era só o que faltava, interrompeu-me.
Primeiro provoca-me e depois diz que acabou o assunto. O que eu quis dizer, é
que se expressou mal, meu caro, porque eu até concordaria consigo se tivesse
levado a conversa para o facto de o pensamento não necessitar de linguagem para
se exprimir e de as abelhas sendo notáveis obreiras e geómetras de precisão,
não terem pensamento porque não possuírem o conceito de flor à sua disposição;
daí que, para recolherem o pólen, só recorram a sinais invariáveis. Nem a deixei
acabar para lhe garantir que era, exactamente por essa razão, que eu considerava
que as abelhas são demasiado razoáveis, ou seja, não se queixam da sua vida e
são felizes à sua maneira. Alto aí, disse esbracejando (que
mãos bonitas e maneirinhas ela tem). Quer convencer-me que para ser feliz,
basta não nos queixarmos da vida que temos, mesmo que não tenhamos tido a liberdade
de a escolher? Quer convencer-me que é compatível termos uma viva vivida e uma vida pensada? Que tolice e que falta de senso o seu! Ponha os olhos em mim que imprimo beleza a tudo onde ponho os olhos; sabe, espero, que beleza é o nome de qualquer coisa que não existe e que é o nome que eu dou às coisas em troca do agrado que me dão. Não a quero convencer de nada, assegurei-lhe. Apenas lhe
digo que, por exemplo, um pássaro pode categorizar flores, sementes e frutos, o
que não acontece com as abelhas. Que lindo arremedo de cientista ele me saiu! - Ouvi-a soletrando as
palavras. Os pássaros, para sua informação, não os únicos animais que têm o privilégio
do pensamento conceptual. Se quer estar actualizado, deixe que lhe diga que
entre o imenso povo das águas (que eu conheço bem porque vim do mar), os peixes
não têm sido considerados intelectuais (na sua embotada forma de dizer, são demasiado
razoáveis); eu considero que os peixes têm sido vítimas de preconceitos antropomórficos
porque só agora se começa a descobrir a sua capacidade de evitar armadilhas e
de representarem o mundo de acordo com os seus interesses. Sabe que eu penso, respondi-lhe de
peito aberto às balas, que me interrompe sempre que eu quero escrever um texto
porque se porta como as abelhas; apenas utiliza estratégias de acção fixadas
por um seu programa genético cuja finalidade é irritar-me a todo o momento. Não
seja tolo, precipitado e mesquinho, eu adoro-o há muitos, muitos anos! - Disse com uma gargalhada em queda e os olhos cheios de riso. Enquanto me dava
um beijo, repenicado e doce, na minha face esquerda, recordava-me que lhe devo telefonar mesmo que seja apenas para eu saber se ela está bem. E quando, feliz, levei
a mão à cara para recolher e guardar, no meu baú de memórias, aquele beijo tão
inesperado, apeteceu-me esgana-la: não é
que a minha cara estava a inchar e a ficar vermelha? Eu a julgar que ela só
era abelhuda! - Pensei desesperado com o ridículo que fiz de mim; afinal quando e se lhe apetece e se lhe dá na real gana, não é mesmo nada (mesmo nada) razoável e até se transforma em abelha.
Rainha porque é minha!
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