Os adoradores de palavras etéreas

Há cerca de cinquenta anos, começou a despontar o interesse pelas neurociências graças aos resultados da encefalografia gasosa. É verdade o que acaba de afirmar, ouvi essa minha omnipresente fada, sempre única, numa levíssima aragem de vento; mas não se esqueça, continuou, que esse interesse resultou do facto de a electricidade cerebral ter sido descoberta nos cérebros dos coelhos e dos soldados feridos na guerra de 1914-1918; muitos filósofos, nessa altura (às vezes penso que também é desse tempo!), disseram tratar-se de uma ideia absurda. E, veja bem, quando os neuropsis (precisa que eu traduza o que quero dizer com neuropsis?) perceberam (há cerca de cinquenta anos, tem razão), que era possível fotografar o cérebro sem abrir a cabeça, deu-lhes para imaginar que era possível fotografar o inconsciente…Que estranha e despudorada gente, não acha?
Acho, respondi, mas também acho que, entre os diversos especialistas na matéria, ninguém se conseguia entender; a incompreensão era total entre técnicos e psicanalistas, por exemplo. E hoje, o que é que está acontecer? É ou não verdade que a imagiologia continua a fazer progressos fantásticos e, ao mesmo tempo (por exemplo), a psicanálise continua a fazer o seu caminho mesmo depois de muitos profetizarem e anunciarem a sua morte? – Arrisquei perguntar, incomodado com a interrupção e sobretudo com as suas provocações. Nem sei se lhe devo responder porque sinto que ficou aborrecido e não era essa a minha intenção, disse ela. Mas porque gosto de si (a partir de hoje vou deixar de me dirigir a si pelo tratamento formal de "meu caro"), aí tem a minha resposta criptada; resposta criptada quer dizer que vai ter que pesquisar e trabalhar muito (o que não é um hábito seu, ainda) para perceber o seu significado.
Bela maneira de fugir à questão! Vou ali e já venho, ripostei. Deixe-se de pensamentos negativos e comentários tolos e vamos à minha resposta, interrompeu-me ela. Tenho para mim que a ciência continua demasiado enfeudada à psicanálise, no sentido em que pensa que as alterações cerebrais, sejam químicas ou anatómicas, modificam a percepção e a representação do mundo. Para quê essa cara de espanto? Aí tem um exemplo: uma lesão no lóbulo pré-frontal do cérebro de um ser humano, ao suprimir a representação do futuro, torna inúteis as vírgulas; essa pessoa, não necessitando das relações temporais, não consegue antecipar a parte final da frase. Sendo assim, será que podemos dizer que a sede cerebral da vírgula (que introduz o tempo na melodia da frase) se situa no lóbulo pré-frontal do cérebro? Claro que não...Porém, não  se esqueça que o cérebro é um inventor nato.
Suponho que entendi o que disse, arrisquei a medo. Creio que está convencida que toda a consciência neurológica é um puzzle de consciências parciais, quer no cérebro quer na estrutura relacional com os outros. Perfeito! Uma vez na vida disse algo correcto, respondeu com ar sério. Gosto que seja assim...Que não seja idólatra das moléculas e que, ao mesmo tempo, se diferencie dos adoradores das palavras etéreas que, dogmaticamente, pensam e dizem que não têm necessidade do cérebro para se exprimirem de forma criativa.
Fiquei gago com este inopinado elogio!

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