Casa Pia de Lisboa (3) - Primeira parte
Nota inicial
“A Casa Pia já não é a Casa Pia” é uma afirmação desastrada e abusiva, feita por uma ex-dirigente da Casa Pia de Lisboa, numa entrevista publicada no Diário de Notícias, em 03 de Julho de 2010, data de aniversário da fundação da Casa Pia de Lisboa por Diogo Inácio de Pina Manique, em 1780.
Esta entrevista merece um destaque especial porque permite começar a olhar, com alguma distância, para o percurso da Casa Pia de Lisboa desde que, em finais de Novembro de 2002, esta Instituição passou a ser identificada, a partir de um artigo publicado no semanário Expresso, como uma casa de horrores relacionada com abusos sexuais de menores; este artigo publicado no semanário Expresso foi o ponto de partida para desencadear um torvelinho/turbilhão de acontecimentos que deram origem ao denominado “Processo Casa Pia” que ainda se arrasta penosamente nos tribunais. Mas aos tribunais o que é dos tribunais e à entrevista o que é da entrevista.
Numa leitura relativamente apressada dessa entrevista, onde se destaca a frase que encima esta nota inicial, podemos ser levados a formular a seguinte conclusão:
- “A Casa Pia já não é uma casa de horrores porque se fez uma reforma profunda dado que o seu paradigma de acção estava profundamente errado”.
Ancorados nesta conclusão, não teremos dificuldade em entender as diversas respostas/considerações que vão sendo dadas, à medida que as perguntas vão surgindo durante a entrevista, embora nos sintamos com alguma curiosidade e algum espanto à mistura (tenha-se presente que na data da entrevista ainda não tinha sido proferido o acórdão do tribunal de primeira instância). Mas, se esta conclusão não custa a formular, já, no entanto, se torna mais difícil descortinar uma resposta a uma questão pertinente e óbvia:
- “Se a Casa Pia já não é a Casa Pia, então o que é a Casa Pia?
Conclusão e pergunta que só nos deixam perplexos uma vez que definir algo a partir de uma afirmação negativa, revela um desconhecimento profundo de um determinado fenómeno e manifesta uma total incapacidade de perceber uma determinada realidade; neste caso, perceber a realidade histórica da intervenção social e educativa da Casa Pia de Lisboa ao longo de mais de dois séculos e que é um património imaterial da sociedade portuguesa que deve não só ser cuidadosamente preservado quanto deve ser posto ao serviços das crianças e jovens mais carenciados através da dinamização de projectos educativos e formativos de muita qualidade.[1]
Não custa a entender tratar-se de uma afirmação desastrada porque se ignora de forma ostensiva a marca de identidade e de excelência que a Casa Pia de Lisboa sempre foi, na história da educação em Portugal no acolhimento, educação e ensino de crianças e de jovens desfavorecidos; e é fácil mostrar que se trata de uma afirmação abusiva porque não se apresentam fundamentos seguros nem consistentes que a justifiquem, preferindo-se o recurso a frases feitas e estafadas.
Um dos fundamentos não seguros, por exemplo, assenta na ideia de que a redução quantitativa da população de crianças e jovens que frequentavam a Casa Pia de Lisboa (quer em acolhimento em internato quer em acolhimento em semi-internato) foi uma medida de longo alcance, o que não é verdade. Logo à partida e uma vez que as razões que justificam essa redução são múltiplas (diga-se que (sem segurança!), se afirma (em documentos institucionais) que havia, em Portugal, no sistema de sistema de protecção de crianças e jovens em perigo cerca de 16 000 crianças e jovens em 2002, e que havia cerca de 11 000 crianças e jovens em 2010), importa não valorizar a redução de crianças e jovens em acolhimento em internato na Casa Pia de Lisboa, dada a imagem negativa que se transmitiu da Casa Pia de Lisboa, desde Novembro de 2002 e até Julho de 2010:
- Essa redução foi acontecendo de forma gradual e natural embora houvesse orientações precisas para uma redução significativa de crianças e jovens por lar/residência.
As mesmas orientações não aconteceram relativamente ao acolhimento em semi-internato. Talvez pudéssemos perguntar, neste caso, tendo presente as razões que conduziram a um incidente grave que deu origem ao assassinato de um aluno dentro de um Estabelecimento da Casa Pia de Lisboa, quais passaram a ser os critérios e os processos que conduziram à admissão de crianças e de jovens na Casa Pia de Lisboa…Talvez!
Podíamos parar por aqui, estaria tudo dito.
Atentemos, no entanto, que não é correcto comparar o ano de 2002 com o ano de 2010 a partir de premissas e de números errados[2]. E é muito menos correcto, fazer crer (a partir dessa comparação) que a Casa Pia não só estava sobredimensionada quanto tinha permanecido “uma ilha” não inserida no sistema de protecção de crianças e jovens em perigo; que tinha permanecido uma “ilha” fora do sistema de educação e ensino em Portugal e que, para além disto, a Casa Pia de Lisboa que sempre foi uma instituição vocacionada para instruir, educar e amparar crianças e jovens carenciados com necessidades educativas especiais e específicas, era uma Instituição para quem (pasme-se!) as famílias dessas crianças e jovens não contavam para nada.
Aparentemente e à primeira vista, aquela afirmação inicial não tem ponta por onde se lhe pegue. Mesmo sendo assim, tentemos dar-lhe algum valor, no sentido de desenvolver uma narrativa histórica, complementando-a com outras afirmações que giram à sua volta nessa entrevista e que aqui se utilizam como subtítulos.
1.“A Casa Pia de Lisboa entrou num processo de desmassificação”
Talvez um pouco de história recente da Casa Pia de Lisboa nos ajude para mostrar a utilização indevida dos conceitos e nos permita dois comentários no que se refere ao processo de desmassificação da Casa Pia de Lisboa[3].
O primeiro comentário para dizer que um verdadeiro processo de desmassificação/desinstitucionalização, contextualizada, se iniciou na Casa Pia de Lisboa a seguir ao 25 de Abril de 1974[4]; processo de desmassificação que decorreu até ao ano de 1986[5] e que, essencialmente, se desenvolveu na transformação do acolhimento em internato (a transformação de camaratas em unidades residenciais e uma forma de acompanhamento das crianças e dos jovens através de equipas técnicas e equipas educativas e de apoio), e numa aposta decidida na revalorização do semi-internato sustentada da recuperação lenta, gradual e segura de espaços e equipamentos e que permitiu:
- A valorização e diversidade de ofertas de educação, ensino e formação (com destaque para o ensino técnico e profissional e para o ensino especializado de surdos e de surdocegos), a dinamização de uma miríade de actividades de despertar cultural e de descoberta de talentos individuais bem como a activação de programas de apoio social e de intervenção precoce.
Paremos um pouco para pensar
Em 1976, iniciou-se na Secção D. Maria Pia da Casa Pia de Lisboa (de ora em diante designada por Colégio D. Maria Pia) um processo característico de desmassificação/desinstitucionalização (relacionado com o acolhimento em internato) e inspirado em Carugati e Palmonari (que desenvolveram em Bolonha (Itália) uma importante investigação relativa à institucionalização de menores) e que equacionaram algumas medidas de desinstitucionalização que se traduziram na criação dos denominados grupos de apartamento.
Este processo de desmassificação (no Colégio de D. Maria Pia) traduziu-se numa primeira fase, na saída para espaços rurais de alguns jovens (Colares, Arrife, Balteiro); numa segunda fase, consistiu em dividir/reduzir as grandes camaratas (identificadas na altura como colégios[6]); e, numa terceira fase, completou-se com a constituição de equipas (técnicas, educativas e de apoio) de acompanhamento e a dinamização do funcionamento de Lares em vivendas no exterior desse Colégio; algumas das quais foram adquiridas para esse fim, como por exemplo o Lar do Algueirão (Sintra); não pode deixar de se referir que também se iniciou um processo de frequência de aulas e actividades livres fora do Colégio de D. Maria Pia, em escolas da rede do Ministério da Educação.
Realce-se que este processo se conseguiu desenvolver, dado que havia liderança forte e porque houve um envolvimento empenhado de um grupo de educadores e de técnicos. Foi um processo de desmassificação/desinstitucionalização que viria a ser seguido (no todo ou em parte) pelos outros Colégios da Casa Pia de Lisboa, embora (nestes) tenha sido dada primazia à adaptação e transformação casas antigas para serem utilizadas como pequenas Residências/Lares no interior desses Colégios, como por exemplo, aconteceu no Colégio de Pina Manique a partir de 1981; a partir desta data e graças ao empenhamento de excelentes profissionais hoje praticamente esquecidos, aconteceu neste Colégio de Pina Manique um salto qualitativo de grande dimensão e que repôs (com inovação, criatividade e actualidade) muito do que era a tradição pedagógica e educativa da Casa Pia de Lisboa quer no acolhimento em internato quer no acolhimento em semi-internato (oferta de ensino (e especificamente ensino técnico e profissional) quer na dinamização de uma vasta gama de actividades desportivas e culturais) e, por isso:
- O Colégio de Pina Manique, os seus educandos, os seus alunos, os seus profissionais e os seus dirigentes foram claramente vilipendiados no ano de 2002 e nos anos seguintes.
Retomemos a narrativa
Já na altura (1976 - 1981) e com preocupações relativas à dimensão psicológica, se discutiam os resultados das investigações desenvolvidas (e particularmente as investigações desenvolvidas no ano de 1975) por John Bowlby para a Organização Mundial de Saúde, a propósito de um embrião da teoria da vinculação e dos efeitos psicológicos do internamento de menores. Considere-se ainda que, integrados neste processo de desmassificação/desinstitucionalização, há alguns trabalhos[7], algumas experiências[8] e algumas medidas que tiveram um papel determinante no futuro da Casa Pia de Lisboa nos anos seguintes[9].
Refira-se ainda que só em 2 de Janeiro de 1986 (interessante seria conhecer as directivas emanadas, nesse ano, pela Direcção Geral da Acção Social), foi publicado o Decreto-Lei 2/86 (que se manteve em vigor mesmo depois de aprovada a Convenção dos Direitos da Criança em 1990) que visava “definir os princípios básicos a que devem obedecer os lares, com suporte em entidades públicas ou privadas, como forma de resposta social dirigida aos menores transitória ou definitivamente fora do meio familiar[10]”. É de todo o interesse conhecer este Decreto-Lei e, ao mesmo tempo, é de todo interesse conhecer todas as entidades que, na altura, eram responsáveis pela sua aplicabilidade em todas as instituições que acolhiam crianças e jovens, sem excepções.
O segundo comentário é para dar um destaque especial a um projecto, desenvolvido a partir do ano de 2003, que deveria merecer a maior atenção por parte dos responsáveis políticos. Trata-se de um projecto que é mais um contributo que a Casa Pia de Lisboa deu para a transformação do sistema de promoção e de protecção das crianças e jovens em perigo[11]; este projecto levou a afirmações precipitadas de alguns responsáveis (e nos quais se inclui a Secretária de Estado Adjunta e da Reabilitação que, numa entrevista que também deu ao diário de Notícias, patenteou ignorância quanto ao funcionamento do sistema, confundindo o seu desejo com a realidade):
- O desenvolvimento de residências de autonomia[12], destinadas a educandos com vários anos de internamento e com bom aproveitamento escolar e bom comportamento.
Claro que se tratou de um projecto que não só era uma vertente de um processo de desmassificação/desinstitucionalização (é verdade!) mas que era, sobretudo, um enriquecimento das respostas sociais previstas no sistema de promoção e de protecção de crianças e jovens em perigo; e, neste enriquecimento do sistema teve mais uma vez papel preponderante a Casa Pia de Lisboa:
- Esta sim é que é a verdade.
Por isso, não chega que se dêem apenas umas quantas pinceladas, adrede distribuídas, sobre um dito “processo de desmassificação” e mesmo assim limitadas e redundando em afirmações precipitadas, sem qualquer fundamentação teórica e sem conhecimento da realidade.
Por exemplo, teria sido bem mais honesto e intelectualmente sério, ter dito que se tinha concluído o processo de deslocação dos Lares do interior para o exterior dos Colégios bem como se tinha conseguido a redução do número de crianças e jovens em cada lar (de acordo com a sua especificidade) e que se reforçaram e requalificaram as equipas de acompanhamento (técnicas, educativa e de apoio).
Simples e verdadeiro!
Façamos uma pausa
É necessário ser justo e dizer o que também se passava na Casa Pia de Lisboa, em Junho de 2004, relativamente ao funcionamento dos Lares, para se perceber o que foi feito e o que não foi feito muitos meses após a mudança (em 2002) da anterior Provedoria da Casa Pia de Lisboa e das anteriores Direcções de alguns Colégios e também para se perceber algum sentido nas afirmações feitas na entrevista. E o que não foi feito deve-se a pura ignorância, demagogia e prepotência de algumas Direcções de alguns Colégios, nesses complexos anos do início da crise que se abateu estrondosamente sobre a Casa Pia de Lisboa.
(Em tempo, apresentar-se-á o tratamento de uma bateria de dados que explica as causas próximas (nas quais tem um papel muito curioso o vasto património da Casa Pia de Lisboa, adiante-se desde já) do desencadear dessa crise no final do ano de 2002).
Quando lemos, por exemplo, o relato da Direcção de um desses Colégios sobre a actividade educativa e sobre a missão dos Lares pelos quais essa Direcção era responsável, não podemos deixar de nos interrogar se não deveria ter sido instaurada uma auditoria ao funcionamento da Casa Pia de Lisboa (ter-se-ia, assim, oportunidade de confrontar o que se fazia em anos anteriores com o que ia sendo feito nos primeiros anos da crise, a partir de Janeiro de 2003[13] e até 2010, dado o espantoso e inqualificável nível de incompetência de gestão (2004) e, especificamente, de ignorância da lei (e dos procedimentos relativos à sua aplicação) de promoção e de protecção de crianças e jovens em perigo que o dito relato revela e porque é de todo o interesse saber qual foi o futuro (actual presente) daquelas crianças e jovens tão mal e injustamente acompanhados)[14]. Mostre-se por isso, para se ter uma ideia segura, o que aconteceu a todos os educandos[15] que saíram da Casa Pia de Lisboa desde 2003:
- Diga-se onde estão[16], o que estão a fazer e oiçam o que eles pensam e o que eles têm para dizer[17] e apresentem-se os resultados dos alunos que frequentaram o ensino regular e especial (dê-se realce ao aproveitamento dos educandos que estudaram em escolas do Ministério da Educação) e dos cursos técnicos e profissionais[18]; mostrem-se os indicadores de aproveitamento e de inserção profissional e social dos educandos internos[19].
2. “São várias mudanças, desde logo o internato”
Esclareçamos agora mais algumas questões específicas relacionadas com o regime de Internato (acolhimento de crianças e jovens em Lares e Residências) e deixemos as questões relacionadas com o ensino e especificamente com o ensino técnico e profissional e com ensino especializado para surdos e surdocegos para uma segunda parte a publicar mais tarde; porém, fixemos que o objectivo de garantir uma escolaridade prolongada e qualificada para as crianças e jovens em perigo implica que, ao longo desta primeira parte deste artigo, também se façam referências ao ensino e à importância de a Casa Pia de Lisboa ser (ou não) detentora de autonomia pedagógica.
Uma interrogação como ponto de partida:
- Será que, intencionalmente, se quer afirmar que o sistema de protecção de crianças e jovens em risco e em perigo, em Portugal estava de boa saúde[20] e que quem estava doente e desajustada da realidade, era a Casa Pia de Lisboa?[21]
Todos sabemos que o sistema de protecção de crianças e jovens em risco e em perigo não vai bem há muito tempo[22] e que começou tarde com a publicação da lei de promoção e protecção de crianças e jovens em perigo, no ano de 1999[23].
É mentira que existisse, em 2002, “o paradigma da entrada aos sete anos e saída aos 18”[24]. Aliás, partiu-se do princípio que fazendo esta afirmação muitas vezes, passava a ser uma verdade inatacável. O que é que se quer dizer com “já não há padres, nem pais nem mães a bater à porta e a pedirem o acolhimento[25] dos filhos por serem pobres[26]. Agora é o sistema a que bate à porta”[27]. Basta um pouco de atenção para verificar, por exemplo, o processo de interacção entre a Casa Pia de Lisboa e os Serviços Sociais de zona, os tribunais, as comissões de protecção, as instituições, as escolas, as famílias, as crianças e os jovens para se perceber quão “batoteira” é a afirmação “agora é o sistema que bate à porta”[28].
Quer porque se desconhece o processo de a admissão em internato quer porque, por exemplo, se esconde que em regime de semi-internato, no ano lectivo de 2003/2004 (mantiveram-se em vigor as regras que vinham dos anos lectivos anteriores), frequentavam a Casa Pia 2619 alunos em escalão gratuito, isto é:
- não só as famílias não pagavam qualquer comparticipação quanto cada um dos alunos ou cada uma das alunas tinha direito a passe, a livros e a material escolar.
Não é legítimo confundir épocas históricas para querer que a realidade seja o que nós pensamos que ela seja. Neste sentido e para provar que não é legítimo confundir épocas históricas, vale a pena ler e pensar o testemunho do escultor António Cândido que aos sete anos entrou na Casa Pia de Lisboa e dela saiu aos dezoito anos (cá está a tal ideia do tal paradigma!)[29].
Valorizemos o que deve ser valorizado
Será sempre um ganho à partida quando se dá mais atenção ao funcionamento do sistema e quando, graças à gazua da concepção e do desenvolvimento de manuais e de programas de qualidade em respostas sociais distintas, se conseguem abrir portas há muito fechadas em muitas instituições vocacionadas para o acolhimento de crianças e jovens em perigo.
Ponderem-se, por exemplo, outras iniciativas entre as quais se incluem as Unidades Terapêuticas, o caso dos Centros de Acolhimento[30] Temporário[31], com um investimento financeiro enorme e um investimento técnico muito pouco seguro, aparentemente pouco eficiente e quase nada eficaz porque na sua maioria funcionam como se de Lares de Infância e Juventude se tratasse (porque raramente é possível concretizar medidas nos seis meses previstos de acolhimento). E sendo assim , muitas vezes com uma qualidade técnica que deixa muito a desejar.[32].
Analisem-se, a título de exemplo, os dados publicados no relatório do PII (Plano de Intervenção Imediata, ano 2009), pondere-se na sua inconsistência e no que isto pode significar para a não melhoria do sistema de protecção[33], que (paradoxalmente) parece ser o seu objectivo principal[34].
3. “Abrangia um universo de 5300 alunos, dos quais 654 em internato. Agora tem apenas três mil, dos quais 234 internos”
No ano de 2002 (e os documentos podem ser consultados) não se confundia a população[35] nem o número de utentes dos dois regimes (internato e semi-internato) com o número de alunos e não se confundia o número de utentes com o número de crianças e jovens[36]. E não se confundia porque a matriz da Casa Pia de Lisboa era ser uma escola (com alternativa de currículos e com relevância especial para os cursos de ensino técnico e profissional) especialmente vocacionada para crianças e jovens em risco e em perigo.
Tratando-se de crianças e os jovens com necessidades especiais (crianças e jovens em perigo (atenção que a lei de protecção das crianças e jovens em perigo foi publicada no ano de 1999 e entrou em vigor no ano de 2001)) ou de crianças e jovens com necessidades específicas (crianças e jovens surdos e surdocegos), esses e estes eram admitidos através de uma equipa de admissões centralizada e viviam, sob a responsabilidade da Casa Pia de Lisboa, em Lares ou Residências.
E dadas as características específicas de admissão, as crianças e os jovens acolhidos em Lares podiam frequentar ou não a escolaridade nos Colégios da Casa Pia de Lisboa, de acordo com o que se considerasse mais adequado para o seu crescimento e para o desenvolvimento pessoal e para o seu despertar cultural. Todos os responsáveis tinham obrigação de saber que nem todas as crianças e os jovens (rapazes e raparigas) que viviam nos Lares/Residências eram alunos em Colégios da Casa Pia. E deviam saber que quando estudavam nos Colégios da Casa Pia (a maior parte das vezes em Colégios cuja direcção não era a responsável pelo Lar/Residência onde as crianças ou os jovens viviam) e não em escolas do Ministério da Educação, era porque uma oferta de alternativa de currículos escolares lhes era mais favorável, ponderadas as suas necessidades específicas e porque o seu acompanhamento estava mais e melhor garantido, articulando os Directores de Turma directamente com a equipa de educadores ou com as equipas de técnicos afectados ao acolhimento e educação em aos Lares onde as crianças e os jovens viviam.
Parece que, intencionalmente, se esqueceu que a Casa Pia de Lisboa era constituída por diversos Colégios, sendo a dimensão de semi – internato a mais significativa (era essencialmente uma escola com alternativa de currículos e com abertura para potenciar as mais diversas capacidades criativas das crianças e dos jovens) e, se esqueceu, que os lares e as residências eram pequenas unidades residenciais (localizados dentro e fora dos Colégios)[37]. Pretendia-se que houvesse um acolhimento cujo ambiente tivesse um carácter mais familiar, mais acolhedor e mais seguro para as crianças e os jovens em perigo que, na sua maioria, estudavam nos Colégios da Casa Pia de Lisboa mas não necessariamente no Colégio que era responsável pela gestão do Lar/Residência onde essas crianças e jovens viviam[38].
Daí que, fazer no ano de 2010 a afirmação de que todos eram alunos[39], é uma forma fácil de comunicar (e com algum sentido) a matriz básica da Casa Pia de Lisboa, mas também revela uma ignorância da realidade histórica da Casa Pia da Lisboa (e especialmente da realidade histórica, desde 1981) que sempre acolheu crianças e jovens em internato[40] e em semi-internato[41], sempre atribuiu subsídios e apoios que garantissem a educação e a formação das crianças e dos jovens e sempre apoiou as suas famílias directa ou indirectamente.
4. “Aderiu ao sistema, tendo abdicado da sua autonomia pedagógica”
E que pensar sobre a expressão “aderiu ao sistema, tendo abdicado da sua autonomia pedagógica”? Perder autonomia pedagógica significa a necessidade de ser uma escola idêntica às escolas da rede pública do Ministério da Educação? Mas afinal, ao longo da história do ensino, quem copiou quem? Abdicou da sua autonomia pedagógica[42] para aderir ao sistema? Que ignorância tão profunda sobre o sistema educativo, sobre o seu nascimento, a sua gestão e a sua eficácia!
Será que ainda não se percebeu que a organização da escola portuguesa nasceu na Casa Pia de Lisboa[43] e que esta instituição foi, ao longo do tempo, um verdadeiro laboratório de modernidade educativa[44]? Será que não se percebia que autonomia pedagógica da Casa Pia de Lisboa foi sempre a sua base para a inovação e a criatividade? Será que não se percebeu que foi esta autonomia pedagógica que permitiu criar e desenvolver currículos e metodologias diferentes feitas à medida das características e das necessidades das crianças e dos jovens? Será que não se percebeu que a enorme variedade de actividades de despertar cultural (do desporto à música, às artes mais diversas, ao teatro e à dança) potenciavam os talentos individuais? Será que não se percebeu que autonomia pedagógica na área da educação e do ensino não dispensava a tutela educativa do Ministério da Educação?
Será?
Deixemos claro:
- Dada a natureza de intervenção social e educativa da Casa Pia de Lisboa[45] havia no ano de 2002 critérios de admissão diferentes para cada um dos regimes (Internato (Lares e Residências no interior e no exterior dos Colégios), Semi - Internato[46], Intervenção Social Específica)[47];
- As crianças e os jovens que viviam nos Lares não tinham, necessariamente, de frequentar a escolaridade no Colégio onde o Lar se inseria nem nos outros Colégios que constituíam a Casa Pia de Lisboa.[48]
Voltemos ao regime de internato
O regime de Internato (materializado no acolhimento de crianças e jovens em Lares e Residências (crianças e jovens acompanhados por equipas técnicas, educativas e de apoio)) era objecto de estudo específico, tendo como objectivo o seu ajustamento ao disposto na lei de promoção e de protecção de crianças e jovens em perigo[49].
Destaca-se, pelo significado que as suas variáveis e indicadores revestem, o relatório referente à caracterização sociográfica dos educandos em Acolhimento em Internato na Casa Pia de Lisboa[50]. Este relatório (que pode ser consultado) desmonta, com carácter demolidor, algumas afirmações feitas na entrevista publicada no Diário de Notícias (as quais apenas parecem resultar de uma brisa patética que sopra levemente, dizendo que o sistema de promoção dos direitos e de protecção das crianças e jovens em perigo funciona bem em Portugal); a verdade é que não é assim:
- Alguém sabe porque é que, em Portugal, não há um Provedor da Criança, porque é que não há um Observatório das Crianças e Jovens em Perigo, porque é que a Adopção Afectiva não está regulamentada?
Cabe aqui ainda referir ainda o trabalho académico “Os Contextos de Desenvolvimento, a Adaptação e o Bem-Estar dos Jovens da Casa Pia de Lisboa” do “Estágio de Psicologia Comunitária” (ISCTE, 2002), desenvolvido por Ana Margarida Santos e Teresa Varanda e orientado pela professora Manuela Calheiros. Opta-se, dada a sua importância, por transcrever (ainda que seja uma citação longa) a introdução desse trabalho que deve ser consultado para que que se acabe com o ideia de que frases feitas fazem algum sentido. Talvez assim alguns, menos informados, comecem a perceber que a Casa Pia de Lisboa “não andava a dormir na forma”.
Leiamos com atenção a introdução a esse trabalho:
- “Como Instituição que aprende, a CPL promove o desenvolvimento de instrumentos que avaliem a qualidade dos serviços prestados, pelo que, decorrente do “Programa Educação para Todos” do Ministério da Educação, foi elaborado um instrumento denominado “Observatório de Qualidade2, com os seguintes objectivos: 1. produzir informação sistemática acerca dos Colégios, de modo a permitir conhecer o seu funcionamento e os resultados em termos de modernização e desenvolvimento; 2. promover a qualidade do Colégio e mostrar a capacidade de dar a todos os alunos a educação necessária; 3. mobilizar as comunidades em torno dos Colégios para que se crie uma cultura de “escolaridade prolongada”, de reconhecimento do valor da instituição escolar, de valorização pessoal e de qualificação profissional (“Programa Educação para Todos”); 4. introduzir uma reforma cultural na gestão dos Colégios, tornando-a transparente e rigorosa, capaz de fazer o seu próprio planeamento de actividades e avaliação de resultados, orientada por princípios de democracia e de eficiência.
Face a estes objectivos, este instrumento abrange um conjunto de indicadores que permitem avaliar cinco dimensões descritivas dos Colégios: contexto familiar dos alunos, processo de ensino, contexto colegial, contexto estimulante para a saúde e Bem-Estar, e resultados educativos. Considera-se que estes indicadores estão interligados entre si e que a conjugação das diferentes dimensões produz determinados resultados.
Contudo, para uma melhor caracterização destes contextos e resultados, a CPL considerou que poderiam ser desenvolvidos mais indicadores descritivos e avaliativos dos Colégios, bem como do Bem-Estar e do sucesso dos educandos.
Uma vez que se verificou uma pouca incidência do “Observatório de Qualidade” em aspectos relacionados com dimensões psicossociais e cognitivas dos jovens, propôs-se a criação de indicadores que permitissem aceder a estas dimensões e que aprofundassem a avaliação do Bem-Estar e a previsão da adequabilidade de integração futura dos jovens que vivem em lares da Casa Pia, e a influência que esta instituição tem nestes aspectos.
O aumento do interesse pelo estudo do Bem-Estar reflecte um crescente direccionamento da sociedade para o valor do indivíduo e para a identificação das condições que levam à sua qualidade de vida em termos pessoais e sociais.
Segundo Diener, Eunkook, Richard e Smith (1999) o Bem-Estar inclui as respostas emocionais do indivíduo, a sua satisfação e os seus julgamentos globais da satisfação com a vida, sendo que para aceder às várias componentes do Bem-Estar pode recorrer-se a julgamentos globais, relatos de estado de humor, fisiologia, memória e expressão emocional. O grau de satisfação depende do nível da adaptação ou aspiração, sendo este influenciado pela experiência passada, comparações com os outros e valores pessoais, entre outros factores.
Considera-se que o Bem-Estar e o desenvolvimento social e cognitivo dos indivíduos é influenciado pelos contextos sociais em que estes se inserem. Bronfenbrenner, com a Teoria do Desenvolvimento Humano, veio demonstrar a importância de se analisarem os vários contextos em que o indivíduo se desenvolve. Estes contextos, segundo a perspectiva ecológica/transaccional de Ciccheti e Lynch (1993), são compostos por quatro níveis que variam no grau de proximidade ao indivíduo e que se influenciam mutuamente: o macrosistema, que inclui os valores e crenças da sociedade; o exosistema, que compreende a comunidade em que se inserem a família e o indivíduo, incluindo os vizinhos e as redes sociais formais e informais; o microsistema, que representa o núcleo familiar do indivíduo, sendo caracterizado pela dinâmica familiar; e, por fim, o nível de desenvolvimento ontogénico, caracterizado pelos factores individuais do sujeito, que influenciam o seu desenvolvimento e adaptação ao meio.
Neste estudo considerou-se relevante aceder a dimensões dos três últimos níveis descritos (desenvolvimento ontogénico, microsistema e exosistema) para avaliar o Bem-Estar e desenvolvimento social dos educandos da CPL.
Assim, para o estudo dos contextos de desenvolvimento dos jovens da CPL, propõe-se o seguinte modelo:
- ambiente institucional (ambiente institucional/comunicação),recursos (suporte social/coping), adaptação/bem estar (auto – percepção/satisfação/expectativas).
Deste modo, considera-se que o ambiente existente nos lares em que os jovens residem e o tipo de comunicação estabelecido com os educadores, através dos recursos sociais (suporte social) e pessoais (coping) que os educandos possuem para lidar comas situações do quotidiano, terão influência na percepção que têm de si próprios, na sua satisfação com a vida e nas expectativas que têm para o futuro, ou seja, na sua adaptação, desenvolvimento social e Bem-Estar.
Para além destas variáveis, pretende-se também verificar se existem diferenças entre sexos, idades, escolaridade, tempo de institucionalização e tipo de lar em que os jovens residem, no desenvolvimento social e Bem-Estar dos educandos da CPL.”
Nota Final
Partilhando da opinião que uma criança institucionalizada em regime de internato tem vivências particulares e experiências educativas diferentes daquelas crianças ou jovens que frequentam o semi-internato, deve esclarecer-se que as características que tornam o internato diferente, tinham e também deviam ter a ver com a frequência da escolaridade como recurso importante e com a sua inscrição social ao longo do tempo.
Parece não haver dúvidas que, como todas as instituições também a Casa Pia de Lisboa devia fazer mudanças na sua forma de estar e de ser numa sociedade diferente; mas este tipo de afirmações feitas numa entrevista publicada num jornal diário, relativas a supostas mudanças radicais fazem lembrar o nosso grande Luís de Camões quando afirmava:
" (...)
Todo o mundo é composto de mudanças
(...)
Do mal ficam as mágoas na lembrança
E do bem (se algum houve) as saudades
(...)
E afora este mudar-se cada dia
Outra mudança faz de mor espanto
Que não se muda já como soía".
(Continua…)
[1]Não podemos esquecer que a Casa Pia de Lisboa é uma ideia muito antes de ser uma instituição. Por esta razão, a sua actividade também é feita das memórias emprestadas pelas várias gerações que nela viveram, estudaram ou trabalharam. As memórias dependem da gente que as conserva e não dos Estabelecimentos inanimados por onde elas passam.
[2]Textualmente, in Diário de Notícias de 03 de Julho de 2010: “Dois meses antes de rebentar o escândalo de pedofilia, em Setembro de 2002, a Casa Pia de Lisboa (CPL) abrangia um universo de 5300 alunos, dos quais 654 em internato. Agora tem apenas três mil, dos quais 234 internos”. Seria interessante saber em quanto é que esta redução correspondeu nos orçamentos e contas dos diversos anos em que a redução foi acontecendo, por exemplo.
Mas, pelo interesse que reveste, leiamos uma síntese da entrevista publicada no Diário de Notícias de 03 de Julho de 2010:
- “Casa Pia perde 2000 alunos com processo de pedofilia
Instituição celebra hoje 230 anos e vive realidade diferente depois do escândalo. Perdeu autonomia pedagógica: é uma escola do sistema. Há antigos estudantes desiludidos.
Dois meses antes de rebentar o escândalo de pedofilia, em Setembro de 2002, a Casa Pia de Lisboa (CPL) abrangia um universo de 5300 alunos, dos quais 654 internos. Agora tem apenas três mil, dos quais 234 internos. A instituição, que hoje celebra 230 anos, entrou num processo de "desmassificação", explica ao DN……... Mas também mudou de "paradigma", frisou. E não haja dúvidas: "a Casa Pia já não é a Casa Pia", esclareceu.
São várias as mudanças. Desde logo o internato. Agora, "as crianças entram ou por ordem do tribunal ou por indicação das comissões de protecção de menores. A CPL está dentro do sistema de promoção e protecção nacional. Pertencemos ao sistema", diz. Já não há padres, nem pais, nem mães a bater à porta a pedir o acolhimento dos filhos por serem pobres. Agora é o sistema que bate à porta. "Há um sistema centralizado, nacional, que gere a colocação das crianças em centro de acolhimento", explicou a directora. A CPL agora só acolhe vítimas. Existem 16 unidades residenciais (ver coluna ao lado).
Depois de acolhidas, o tempo na instituição deve ser o mais curto possível. "Quando entrei a média de permanência era de oito anos. Agora é de cinco anos, espero que brevemente seja de dois anos. O paradigma da entrada aos sete anos e a saída aos 18 pertence ao passado." Porquê? "A CPL, agora, quando acolhe a criança, acolhe também a família e trabalha com ambos. A ideia é que a criança regresse o mais rapidamente à família e a encontre diferente, em consequência da nossa intervenção. A família não existia no antigo paradigma", notou…... A oferta de ensino também mudou. Também aqui a instituição aderiu ao sistema, tendo abdicado da sua autonomia pedagógica. O Ministério da Educação passou a ditar as regras. O número de cursos técnico-profissionais desde sempre a imagem de marca da instituição, diminuíram e funcionam com menos horas. "A CPL não poderia ter permanecido uma ilha. Teve de se ajustar ao sistema nacional". Para ……., a perda de alunos tem uma justificação: "O País tem mais oferta técnico-profissional." Assim, tendo-se a CPL transformado em mais uma escola do sistema continua, útil? "Temos de estar no sistema, mas temos de ser diferentes. O paradigma mudou, mas sua missão mantém-se: transformar o negativo em positivo", atestou………. Uma opinião contrariada por antigos alunos e professores da instituição. "A CPL tinha problemas, mas era uma escola profissional que preparava os jovens, sobretudo carenciados. Tinha formação válida. Agora não tem", disse ao DN …….., um dos que denunciaram o escândalo de pedofilia. Está ... e diz que abandonou a Casa Pia por discordar das novas orientações. Também ….., antigo aluno e ...: "A CPL está a fazer um percurso totalmente errado. Os cursos foram destruídos”.
[3]É de evitar a utilização do conceito de desmassificação sem o contextualizar e esclarecer. Daí que a ameaça conceptual da “tirania do normal” seja uma questão fundamental que exige uma investigação mais aprofundada. Fixemos que, numa linguagem que todos entendem, os processos de desmassificação/desinstitucionalização assentam na clarificação e no ajustamento dos projectos de vida das crianças e dos jovens: isto significa orientar as crianças e os jovens para os lugares de vida mais adequados ao seu desenvolvimento e conquista de autonomia de vida.
[4]Está ainda por concluir um estudo sobre a intervenção de partidos políticos (e de pessoas a eles ligadas) na vida da Casa Pia de Lisboa entre os anos de 1974 a 1985.
[5] Não perceber o que aconteceu entre 1974 e 1982 e entre 1982 e 1986 (e ter-se passado uma esponja sobre alguns acontecimentos), é muito grave…. Entre 1974 e 1982 deve pensar-se um país em revolução e tudo o que isso pode ter significado na vida das organizações. Entre 1982 e 1986 também aconteceu uma reestruturação interna na Casa Pia de Lisboa (também marcada por alguns acontecimentos trágicos que viriam a ser aproveitados para alimentar o denominado “escândalo de pedofilia”); reestruturação interna que se concluiu com a publicação de uma nova Lei Orgânica em 1985. Pondere-se que foi nesses anos que se criaram alguns lares no exterior dos colégios (leia-se o artigo do Dr. José Pires publicado na Revista da Casa Pia de Lisboa, nº 8 de Dezembro de 1991). A partir dessa altura os Colégios abriram-se à coeducação e equacionaram-se, recuperara-se e construíram-se espaços novos (por exemplo, o Instituto Jacob Rodrigues Pereira, a Colónia de férias da Areia Branca, o Colégio António Aurélio da Costa Ferreira, a Escola Agrícola F. Margiochi, o Centro Cultural Casapiano, entre outros) de intervenção social, educação, formação, de informação e de cultura, de desporto, de férias e de tempos livres.
[6]Alerta-se para a importância de pesquisar e entender a evolução semântica da palavra colégio na história do ensino; talvez se evitem afirmações e decisões sem sentido e precipitadas.
[7] Leia-se a introdução a um trabalho elaborado em 1980 pelo Centro Médico Pedagógico da Casa Pia de Lisboa:
- “O presente trabalho “Reflexões sobre pedidos de internamento na Casa Pia de Lisboa” que agora divulgamos, surgiu de uma dupla necessidade “pensar a prática”, isto é, investigar as múltiplas condicionantes intervenientes no processo de admissão a internato e, poder com esse facto, oferecer propostas para a adequação da resposta internato às solicitações que são feitas. A análise empírica prática apontava-nos para medidas outras além da “solução internato” que uma sistematização veio corroborar. O nosso estudo abrange uma recolha feita em 268 processos existentes nos nossos arquivos no período correspondente a 2 anos (Maio/78 a Abril/80) e apresenta lacunas, devido, especialmente, a uma anotação dos dados, feita de forma pouco sistemática. Para situações de crianças com orfandade completa, abandono, rejeição, etc, que exigem uma resposta social e que são, por si só, situações de desenraizamento, não se poderá responder com resposta de igual cariz: o internamento na sua acepção actual. A inserção na comunidade de origem, em pequenos grupos, continua a parecer-nos a proposta mais ajustada e um desafio, supomos, à chamada “Justiça Social”.
[8]Trata-se de uma experiência (duas outras experiências mereceriam um estudo cuidado: as experiências que decorreram no Arrife e no Balteiro, vale do Jamor) de desmassificação/desinstitucionalização (Dezembro/1975) que deve ser lida com muita atenção porque se refere à Quinta de Colares. Transcrevem-se dois pequenos excertos:
- “Neste primeiro contacto as duas pessoas responsáveis falaram da sua experiência ali e dos seus projectos: montagem de uma cooperativa agrícola e montagem de uma creche para os filhos dos camponeses (expressão por eles usada). O director da Secção apresentou as preocupações que ali o levaram: pediu a integração, a título experimental, por um período de férias (8 dias), de um grupo de quatro rapazes de 15 e 17 anos com um comportamento anti-social. Os responsáveis acolheram com muito interesse a proposta e aceitaram. No director ficou a impressão de serem duas pessoas que ele qualificou na altura como “marginais civilizados” (…) A Quinta dos Jornais fica situada à beira da Estrada Nacional que liga Colares ao Cabo da Roca, a 400 metros do mar aproximadamente e próximo de uma aldeia. A Quinta, com cerca de um hectare, dispõe de uma vivenda em estado de semi abandono, praticamente sem mobiliário. Não tinha água canalizada, mas um poço, junto à casa, e uma fonte pública nos extremos da quinta. Não tinha luz eléctrica (…) O grupo recebia na Quinta muitas visitas de colegas e amigos da responsável; alguns passavam lá vários dias. Um casal que vivia e trabalhava em Lisboa era visita habitual em fim-de-semana. Também estrangeiros ali estiveram entre os quais o repórter de uma revista espanhola, que ali pernoitou quando veio a Lisboa em serviço. Dedica, depois, na revista uma reportagem a esta experiência. No que se refere à vizinhança havia uma atitude de não-aceitação do grupo. Criticavam energicamente as atitudes dos responsáveis e dos educandos que consideravam um atentado aos costumes. Entre estas a intromissão dos educandos no cemitério local donde levaram vários objectos, pouco tempo depois de ali viverem.”
[9]Considere-se uma “proposta de realização de uma semana de estudos a realizar no fim do ano lectivo” datada de 31 de Maio de 1977 e elaborada pelo Adjunto Técnico do Provedor, Dr. Videira Barreto (envolvendo vários grupos de trabalho) e com os seguintes temas:
- “1. Estudo sobre o lançamento do 9º ano de escolaridade na Casa Pia de Lisboa (grupo liderado pelo Professor Medeiros Frazão). 2. Perspectiva de solução para os alunos problemas do Ciclo Preparatório (grupo liderado pelo Professor Artur Ferreira). 3. Comunicação da secção de D. Maria Pia à semana de Estudos (elaborada pelo Dr. José Pires). 4. Necessidade de reestruturação das oficinas – seu apetrechamento humano e técnico (grupo liderado pelo Professor Medeiros Frazão). 5. Possibilidade de adaptação do ensino ministrado noutros países, à Casa Pia de Lisboa (Professoras Guida Martins Ferreira e Isabel Vaz). 6. Reflexão da problemática do 9ºano a nível das várias secções da Casa Pia de Lisboa (grupo liderado pelas Professoras Teresa Milheiro e Manuela Birg). 7. Objectivo a atingir, globalmente, na Casa Pia de Lisboa – Processos de aprendizagem (grupo liderado pelas Professoras Teresa Milheiro e Manuela Birg).
- “1. Estudo sobre o lançamento do 9º ano de escolaridade na Casa Pia de Lisboa (grupo liderado pelo Professor Medeiros Frazão). 2. Perspectiva de solução para os alunos problemas do Ciclo Preparatório (grupo liderado pelo Professor Artur Ferreira). 3. Comunicação da secção de D. Maria Pia à semana de Estudos (elaborada pelo Dr. José Pires). 4. Necessidade de reestruturação das oficinas – seu apetrechamento humano e técnico (grupo liderado pelo Professor Medeiros Frazão). 5. Possibilidade de adaptação do ensino ministrado noutros países, à Casa Pia de Lisboa (Professoras Guida Martins Ferreira e Isabel Vaz). 6. Reflexão da problemática do 9ºano a nível das várias secções da Casa Pia de Lisboa (grupo liderado pelas Professoras Teresa Milheiro e Manuela Birg). 7. Objectivo a atingir, globalmente, na Casa Pia de Lisboa – Processos de aprendizagem (grupo liderado pelas Professoras Teresa Milheiro e Manuela Birg).
[10]Tratou-se assim de impor “a definição legal dos princípios básicos que devem nortear a estrutura “lar” de molde a que cada vez mais, de forma qualificada, respondam às necessidades que se lhe deparam; aliás de acordo com o expressamente previsto no artigo 37º da Lei nº 28/84, de 14 de Agosto”.
[11]Leia-se a entrevista ao Diário de Notícias, no dia 4 de Dezembro de 2010, da Secretária de Estado Adjunta e da Reabilitação para o confirmar:
- "O que levou à criação desta solução?
- Estes jovens precisam de sair da protecção excessiva que têm nas instituições e de criar a sua autonomia. Há jovens que estão em acolhimento há mais de uma década. Antes, dava-se por adquirido que entravam no sistema e aí ficavam até aos 18 anos. E depois, quando saíam, não havia qualquer acompanhamento. Não se sabia sequer o que lhes acontecia no dia seguinte. Agora, as crianças que estão em acolhimento têm um projecto de vida definido. E um quarto dos que são acolhidos não permanece sequer um ano na instituição.
Mas os que atingem os 18 anos estão em condições de ser autónomos?
- A maioria não tem autonomia financeira, não sabe sequer fazer uma sopa e não tem quaisquer competências de gestão e de decisão. Quem esteve dez anos numa instituição nunca teve de decidir nada na sua vida, teve sempre alguém que decidisse por ele. É isso que queremos inverter. Estes apartamentos são uma espécie de desmame dos jovens.
Mas isso pressupõe uma actuação diferente das próprias instituições. É fácil operar esta mudança?
-É nisso que estamos a trabalhar. O sistema de acolhimento está a caminhar para três pilares. O primeiro é o trabalho com as famílias, para que estas tenham condições para cuidar dos seus filhos. O segundo é a pré-autonomização e a autonomização dos jovens mais velhos (no qual se incluem estes apartamentos). O terceiro é o acolhimento especializado, direccionado para crianças e jovens com problemas de comportamento, do foro mental ou sexual.
Está previsto o alargamento desta solução?
Sim. Actualmente há 21 apartamentos mas queremos chegar a mais jovens."
[12]Justo é referir aqui o papel qualificado e determinante da Professora Doutora Manuela Calheiros bem como referir o papel da Direcção, dos técnicos e dos educadores e outros profissionais do Colégio de Santa Catarina.
[13] Transcreve-se uma pequena parte (que identifica a situação dos Lares num dos Colégios) da acta nº 101 da reunião do Conselho de Direcção da Casa Pia de Lisboa, realizada em 22 de Junho de 2004:
- “Deu-se início à reunião da parte da tarde que começou às 15h, com o 3º ponto da ordem de trabalhos – situação actual de cada Colégio. Cada um dos Colégios relatou os aspectos que considerou principais na intervenção desenvolvida com o respectivo internato. (…). Colégio (…). Tem cinco Lares entre muros do Colégio com 98 jovens dos 5 aos 22 anos de idade, sendo que o maior número de jovens compreende as idades dos 11 aos 16 anos. Destes cinco lares, 2 são mistos e 3 são masculinos. Dez educandos estudam em escolas externas à Casa Pia e prevê-se que para o próximo ano lectivo passem a ser mais doze educandos. Estão-se a preparar 6 baixas a decorrer até ao final do ano mas mediante a proposta de diminuição de lotação dos lares apresentada superiormente pelo Colégio, o número de vagas é menor. O colégio tem jovens que estabelecem uma relação com o adulto, traumática e que só resulta se for para benefício do próprio aluno. O jovem problemático quando não quer não se compromete nem se vincula, portanto não estabelece relações, havendo situações de indisciplina a roçar pela delinquência. Em quase todos os lares há líderes com necessidade de liderar seja o que for desde que seja contra algo ou contra alguém. Mediante o seu insucesso escolar, perdem o interesse por qualquer actividade ou por qualquer alternativa e como não têm esperança, não têm medo. Há também os líderes que são verdadeiras referências para outros, enquanto elementos equilibradores e positivos. Os lares, do ponto de vista físico estão dentro do colégio, com uma estrutura longe de parecer uma casa mas com espaços agradáveis, arranjados e acolhedores. As equipas têm cinco educadores por cada um dos lares e há também uma psicóloga, uma assistente social e um docente de apoio educativo. A cultura organizacional é cristalizada, apresenta um desgaste de recursos humanos e objectivos não muito bem definidos. Há uma desvalorização da família não se trabalhando com ela devidamente no sentido do reencontro e de suprir as dificuldades que os separam. Apesar da equipa técnica ser nova, houve dificuldades na articulação entre esta e as equipas educativas e em cada uma perceber o seu papel e como se poderiam complementar. As duas equipas reúnem semanalmente mas apesar disso a sua relação de trabalho tem muitos ruídos e levanta questões, apesar de teoricamente estarem de acordo. Difícil articulação e falta de sintonia no essencial. Cada lar tem um monitor, cujo conteúdo funcional foi revisto e explicitado no início do ano. Ensaiou-se este ano o intercâmbio entre lares na organização das actividades de fins-de-semana e de férias e a elaboração de um jornal mensal organizado pelos monitores e com participação de todos. Necessidade de se definir tempo de permanência dos jovens nos lares contra a ideia de que o internato é para sempre e deve-se trabalhar verdadeiramente com as famílias. Para que os educandos tenham uma noção dos custos de forma a valorizar o que têm, deveriam saber os custos daquilo que têm no lar. É necessária a formação contínua dos educadores e a Direcção sentiu necessidade de reunir com os educadores todos no dia 2 de Julho, em encontro alargado, para reflexão e objectivos”.
[14]Tenha-se em atenção que à Casa Pia de Lisboa não foram regateados pela tutela naquele ano quaisquer tipos de apoios, nomeadamente na possibilidade de contratação de pessoal.
[15]Sempre que se utiliza o conceito de educando ou educandos, pretende-se identificar as crianças e jovens que viviam em Lares da Casa Pia de Lisboa.
[16]Qual o número de jovens que foram colocados em Centros Educativos do Ministério da Justiça desde 2003?
[17]Porque é que não se apuraram responsabilidades relativamente a dirigentes que de 2003 a 2005, à margem de qualquer decisão judicial, “expulsaram” educandos (que viviam nos Lares) porque estes faltavam às aulas ficando a dormir nos Lares, resultado de consumos de drogas; comportamentos que esses responsáveis não souberem prevenir, nem souberam alterar propondo medidas exequíveis?
[18]É justo que refiram algumas iniciativas interessantes como, por exemplo, a assinatura de um protocolo de cooperação estabelecido entre a empresa Portugal Telecom e a Casa Pia de Lisboa em 2004.
[19]Era importante que também um conjunto de “senhores e senhoras” jornalistas tivessem a ideia de que (sem consciência disso, acredita-se) prejudicaram gravemente a vida de um número significativo de jovens. Sabem por acaso que havia jovens (educandos e educandas internos) que tinham vergonha de se identificar como alunos/as da Casa Pia de Lisboa quando procuravam emprego?
[20]Nada melhor que um exemplo verdadeiro e muito recente para qualificar falhas do sistema de protecção:
-“Esta é a situação do jovem (14 anos) cujo pedido de admissão foi solicitado esta semana”.
O motivo de admissão é abandono/entregue a si próprio.
O jovem recusa viver junto do pai e este mostra resistência em receber o filho.
O jovem em questão já esteve institucionalizado várias vezes. O primeiro acolhimento em Casa de acolhimento emergência data de 2005, tendo sido transferido para Lar à posteriori. Em 2007, por decisão do Tribunal, o jovem é entregue à guarda e cuidados do pai. Em Junho de 2008 dá entrada na Casa de acolhimento de emergência, onde fica até Julho de 2008, altura em que é transferido para o Lar especializado (…). Em Junho de 2009, novamente por decisão do Tribunal, é entregue à guarda e cuidados do pai, cessando a medida anteriormente aplicada.
Nota1. Trata-se de um percurso no sistema algo curioso porque duas vezes repetido (a primeira vez entre o ano de 2005 e de 2007 e, a segunda vez, entre o ano de 2007 e de 2009): entrada em casa de acolhimento de emergência, saída para um lar (lar especializado no segundo percurso) e entrega à guarda e cuidados do pai. Neste momento encontra-se, novamente acolhido, em Casa de acolhimento de emergência. “Todos os acolhimentos do jovem resultam de fugas efectuadas por este, no sentido de fugir aos maus-tratos físicos de que era alvo por parte do pai”.
A nível escolar, encontra-se matriculado no 7º ano, em currículo alternativo, sendo que no 1º período não apresentou negativas em qualquer disciplina.
De acordo com as informações, foi delineado como projecto de vida: Acolhimento Residencial com vista à promoção de autonomia.
Nota2. Óbvio. A idade do jovem não deixa dúvidas a ninguém. Atente-se que é altura de pensar a escola com internato como um “valor refúgio” para este tipo de jovens…É altura de deixar de lado um conjunto de ideias feitas: mas é necessário ter coragem e saber.
[21]Atentemos de forma séria na realidade. Se em acolhimento em instituição estavam em 2010, na Casa Pia de Lisboa, 234 crianças e jovens, então, estavam acolhidos de acordo com dados oficiais, mais de 11 000 crianças e jovens noutras instituições sob a responsabilidade do Estado (algumas sob a responsabilidade directa). Qual a entidade que responde pela qualidade da intervenção social e educativa do sistema de promoção e protecção de crianças e jovens em perigo que nesse ano (de acordo com os dados oficiais) abrangia mais de 11 000 crianças e jovens?
Aproveita-se para deixar claro que a primeira instituição, em Portugal, a fazer a requalificação de alguns profissionais (educadores de internato e de semi-internato) foi a Casa Pia de Lisboa, através da realização, a partir de 1991, de um curso de Educador Social de nível 3, em parceria com o Instituto Piaget e suportado em despacho conjunto específico (este despacho foi organizado com o GETAP (na altura dirigido pelo Dr. Joaquim Azevedo) e foi o primeiro a ser aprovado, naqueles moldes, em Portugal). Aproveita-se ainda para deixar claro que o actual curso de Especialização Tecnológica “Acolhimento em Instituição” (nível 4) nasceu de proposta da Casa Pia de Lisboa (antes de 2002) ao Instituto de Serviço Social (depois de contactos com o Instituto do Emprego e da Formação Profissional, com a Direcção Geral de Administração Pública e com o Departamento de Ensino Secundário do Ministério da Educação), com o objectivo de mais uma vez ser possível uma nova e mais elevada requalificação dos educadores.
[22]Questionem-se e ouçam-se, com serenidade e muita calma, aqueles e aquelas que são responsáveis pelo actual sistema de promoção e de protecção das crianças e jovens em risco e em perigo (na sua concepção, no seu desenvolvimento e na sua avaliação), alguns dos quais ainda desempenham funções de grande responsabilidade.
[23]A sua aplicação efectiva foi a partir do ano de 2001.
Considerem-se as seguintes afirmações (página 20) do Relatório Intercalar do Conselho Técnico Científico da Casa Pia de Lisboa, datado de 29 de Julho de 2003:
Considerem-se as seguintes afirmações (página 20) do Relatório Intercalar do Conselho Técnico Científico da Casa Pia de Lisboa, datado de 29 de Julho de 2003:
- “ Um dos factores mais desestabilizadores que actualmente contribuem para algum mal-estar nos lares de internato e que se vem manifestando em todos os Equipamentos da Segurança Social, e em particular nos lares da CPL, diz respeito à situação criada pela entrada em vigor da nova legislação de Menores. Esta legislação veio impedir a transição dos adolescentes com idade superior a 14 anos para os estabelecimentos do Ministério da Justiça, em caso de grave indisciplina. Na legislação anterior a 2001, sempre que o maior de 14 anos deixasse de aderir ao projecto educativo, em termos de pôr em causa o apoio institucional – por exemplo, não frequentando as aulas, ausentando-se do lar durante a noite sem autorização, causando distúrbios regularmente, não obedecendo aos educadores, provocando professores e outro pessoal da instituição – por forma a tornar inviável a vida institucional, após a informação do Tribunal de Menores, e audição do adolescente internado, podia ele transitar para estabelecimento de reeducação, hoje centro educativo, para, após observação, que compreendia as valências social, psicológica e psiquiátrica, se necessário, o relatório podia propor o seu regresso à instituição anterior ou o seu internamento em centro educativo. Esta dinâmica trazia claras vantagens, visto que a não aceitação sistemática das orientações institucionais, sem qualquer consequências, são sentidas pelo adolescente com uma sensação de impunidade que não conduz à mudança de atitude que se deseja. Pelo contrário, a não observância das regras sem os limites que lhe são exigidos, caso não possam ser-lhe impostos, contribuem para uma cultura de irresponsabilidade. Muitas vezes, durante a observação no centro educativo, o adolescente interiorizava o prejuízo que advinha da sua transferência, visto que deixara na CPL os amigos e os educadores com quem estabelecera relações próximas de afecto, e procurava inverter o percurso que iniciara; não raramente, após a observação, o menor regressava, portanto, não sem antes estabelecer um compromisso de acatar as normas institucionais. Nos casos em que a observação concluía que a medida adequada era o internamento em centro educativo, esse percurso de indisciplina estava já associado, quase sempre, a delinquência. Havia notícia de prática de factos ilícitos, embora de pequena gravidade. No entanto, mostrava-se adequada a intervenção a um nível diferente, face à diversa natureza dos factos. A impossibilidade actual de agir com celeridade necessária nestes casos gera constrangimentos. Por um lado, tem-se consciência de que o adolescente não tem alternativa à institucionalização. Muitos destes adolescentes indisciplinados não dispõem de suporte familiar, pelo que expulsá-los, no caso de agressão a um educador ou a outro educando, por exemplo, não resolve o problema. A instituição continua a ter o dever de acolhê-lo, pois, caso contrário, ele ficará sem abrigo ou cairá definitivamente na criminalidade. Aliás, sabemos que estes são por vezes os que mais sofreram na infância e a sua agressividade não representa senão o apelo para o tratamento das suas feridas psicológicas. Por outro lado, se permanecer no lar, onde por vezes não pernoita, e no Colégio, que não frequenta, gera mais indisciplina nos outros. Também para estes será mais agradável faltar por vezes à escola e às oficinas. A lei, actualmente, só permite a aplicação de medida cautelar de guarda em casos graves. Mais, a intervenção do Estado está limitada pois pressupõe a verificação de infracções de natureza pública.”
[24]Mesmo admitindo que esta afirmação se refere apenas à admissão para acolhimento em Lares (porque a expressão se aplicada à frequência do semi-internato, ela apenas confirma as expectativas elevadas da Casa Pia relativamente aos seus alunos) continua a ser uma verdade frágil. E já que se fala em Lares, era interessante, que aparecesse algum manual de gestão e funcionamento dos Lares antes daquele que foi organizado pela Casa Pia de Lisboa. E que dizer de uma carta da saúde publicada em 1997/98 organizada por ciclos de vida? Alguém conhece alguma carta deste tipo, em Portugal, em vigor em data anterior?
[25]É ilegítimo confundir acolhimento apenas com acolhimento em internato porque acolhimento em semi-internato permite uma leitura diferente, mas articulada. (Ficaremos surpreendidos quando conhecermos o papel da Casa Pia de Lisboa na criação e organização do semi-internato, em Portugal, na segunda metade do século XIX!).
[26]Que falta de senso…então a Casa Pia de Lisboa não deve participar activamente na luta contra a pobreza? Será que se tem presente que a pobreza e as formas de a combater (mesmo quando se tratava de pobreza voluntária) ganharam contornos diferentes ao longo do tempo e que sempre a Casa Pia participou neste processo de combate à pobreza? Então não era a Casa Pia de Lisboa que a muitas crianças e jovens que frequentavam os seus Colégios em regime de semi-internato, garantia as únicas refeições do dia, por exemplo? Porque é que não se dá uma volta pela cidade de Lisboa e bairros limítrofes para ver a realidade? Se se tiver a noção da realidade social e económica de muitas crianças e jovens (se se tiver uma aproximação, ainda que mínima, do que possa significar "a pobreza infantil" para o desenvolvimento de uma criança) talvez não se desenvolvam tantos projectos com "os pés bem assentes no ar"...
[27]Por acaso têm alguma ideia do ano da entrada em vigor da lei de promoção e protecção das crianças e jovens em perigo? E por acaso haveria alguma ideia segura, por exemplo, de qual seria o funcionamento dos estabelecimentos integrados sob a responsabilidade directa da Segurança Social?
[28]Agora é o sistema que bate à porta, diz-se. Pois bem, vamos aos às entidades e aos números, dando um exemplo do que acontecia, na Casa Pia de Lisboa) antes da publicação da Lei de Promoção e de Protecção das Crianças e Jovens em Perigo; exemplo relativo aos anos de 1996 e de 1997, para tirar dúvidas. Assim:
- O Tribunal de Menores solicitou a admissão de 103 (em 1996) e de 102 (em 1997) crianças e jovens; o Centro Regional de Segurança Social de Lisboa solicitou a admissão de 37 (em 1996) e de 21 (em 1997) de crianças e jovens; a Comissão de Protecção de Menores solicitou a admissão de 14 (em 1996) e de 23 (em 1997) crianças e jovens; a Câmara Municipal de Lisboa solicitou a admissão de 46 (em 1996) e 20 (em 1997) crianças e jovens; as IPSS solicitaram a admissão de 11 (em 1996) e 8 (em 1997) crianças e jovens e mantinha-se um acordo específico e preferencial com a Santa Casa de Misericórdia de Lisboa.
- O Tribunal de Menores solicitou a admissão de 103 (em 1996) e de 102 (em 1997) crianças e jovens; o Centro Regional de Segurança Social de Lisboa solicitou a admissão de 37 (em 1996) e de 21 (em 1997) de crianças e jovens; a Comissão de Protecção de Menores solicitou a admissão de 14 (em 1996) e de 23 (em 1997) crianças e jovens; a Câmara Municipal de Lisboa solicitou a admissão de 46 (em 1996) e 20 (em 1997) crianças e jovens; as IPSS solicitaram a admissão de 11 (em 1996) e 8 (em 1997) crianças e jovens e mantinha-se um acordo específico e preferencial com a Santa Casa de Misericórdia de Lisboa.
[29]Consultar Revista da Casa Pia de Lisboa, nº11, Junho de 1993:
- “Como foram esses anos de ganso?
A Casa Pia de Lisboa foi, até 1940, um colégio exemplar, com óptimos professores e mestres de grande nível. Quem passou pela instituição sabe que tudo se regia por padrões de igualdade. Todos tinham acesso a tudo e enquanto os mais aptos subiam, os menos aptos ficavam um pouco atrás. Vestíamos todos da mesma maneira, a comida era igual para todos e todos tinham acesso aos mesmos princípios de instrução.
Saudades desse tempo?
Sei que a partir de 1940, a situação se alterou na Casa Pia (talvez a eclosão da Guerra na Europa contribuísse para isso), mas não tenho razão de queixa do período em que ali estive. Há sempre aspectos negativos mas, no cômputo geral, a instituição marcou-me pela positiva sendo de realçar o ensino de qualidade ali praticado na altura. Foi ali que aprendi a desenvencilhar-me sozinho, subordinando-me a um sistema de vida completamente diferente daquele que temos no seio da família. Na Casa Pia fortaleci, sobretudo, a minha personalidade e o meu sentido de justiça. Ainda hoje isso é bastante premente na minha vida, sofrendo muito com as injustiças, com as prepotências e abusos de autoridade. Julgo até que escolhi a vida artística para não depender quase de ninguém.
Os alunos praticavam muito desporto?
A actividade desportiva era muito intensa e dali saíram alguns campeões. O entusiasmo pela trapeira era muito grande e no tempo não posso deixar de destacar grandes jogadores como o Feliciano, Fernando Vaz, José do Carmo (falecido recentemente) e Costa Santos, entre outros. Entretanto, saí da Casa Pia e comecei a fazer a minha formação artística na Escola António Arroio, dando continuidade aos ensinamentos adquiridos na instituição, com os professores Pedro Guedes e Albertino Guimarães e com o escultor José Neto.
[30]Vale pena transcrever aqui uma notícia publicada no nº 1 (Junho de 1988) da Revista da Casa Pia de Lisboa:
-“Foi inaugurado e está já a funcionar desde Janeiro de 1988, o Centro de Acolhimento (Ajuda) especialmente vocacionado para situações de emergência social. Esta valência vem colmatar uma necessidade desde há muito sentida pela instituição”.
E ainda ler na Revista da Casa Pia de Lisboa, nº 2 de Dezembro de 1992:
E ainda ler na Revista da Casa Pia de Lisboa, nº 2 de Dezembro de 1992:
- “…do trabalho e dos resultados já obtidos (em 1988, acolhemos 52 crianças, das quais 30 já foram reintegradas), temos a demonstração plena da existência deste Centro e, ao mesmo tempo, a certeza de que os meios e os recursos que possuímos devem ser optimizados no sentido de dar resposta às exigências futuras, de forma a evitar ou minimizar as consequências drásticas de muitas crianças em situação de emergência inadiável”.
[31]Nos últimos anos, em Portugal, está em curso um enriquecimento do Sistema de Promoção e Protecção de crianças em jovens em perigo e os Centros de Acolhimento Temporário (uma resposta institucional no sistema) podem ser um elemento chave para uma mudança de intervenção com carácter sistémico que também tenha um cariz de intervenção compreensiva e reparadora (quer relativamente às crianças quer relativamente às suas famílias) e que não tenha um cariz de intervenção assistencialista ou punitiva. Nestes Centros de Acolhimento Temporário são acolhidas crianças e jovens em perigo e as suas idades podem variar entre os 0 e os 18 anos (em casos especiais a intervenção pode prolongar-se até aos 21 anos). Em regra, dois conceitos andam associados no processo de acolhimento: os conceitos de fractura afectiva e fractura cognitiva. Estes desencadeiam e exigem uma acção educativa e pedagógica diferenciada cuja sustentabilidade assenta na melhoria das condições relacionadas com a dignidade do espaço físico de acolhimento, com o suporte afectivo continuado e com a supervisão dos adultos. Também exigem uma nova forma de olhar para as famílias (atente-se que hoje família é muitas vezes um conceito equívoco e não unívoco); o que interessa é convidar as famílias para uma viagem e não é nada desejável que se fique pela compra dos bilhetes, à espera que elas façam a viagem sozinhas.
[32]Que medidas se desenvolvem para que o tempo de intervenção (seis meses) num CAT seja respeitado? Onde está a coragem para apresentar os resultados (e os custos) do plano DOM (Desafios, Oportunidades e Mudanças)? Por onde anda a Comissão Nacional das crianças e jovens em risco?
[33] A fazer fé, por exemplo, na tipologia dos projectos de vida delineados (com o pressuposto de que estão bem delineados) para as crianças e jovens, então a rede de equipamentos está claramente desajustada. Para o confirmar:
- cruzem-se os dados (relativos aos projectos de vida pelas idades das crianças e jovens acolhidos (páginas 41 a 49 do PII) com um olhar (qualitativo e quantitativo) para a organização, a quantidade e a tipologia da rede de equipamentos.
[34]Sem retirar o mérito que o documento também tem, atente-se no seguinte parágrafo da página 61 do PII (tentemos adivinhar o que se quer dizer):
- “Integrado num modelo especializado de acolhimento, importará assim, a criação de apartamentos de autonomização integrados em Lares de Infância e Juventude, de residências especializadas para atender e entender jovens com problemas graves do comportamento, associadas muitas vezes a patologias do foro da saúde mental, de Centros de Acolhimento Temporário efectivamente qualificados para promover a reunificação familiar sempre que viável, ou a adopção, sempre que se verifiquem os necessários fundamentos”.
[35]Pensemos que, em Dezembro de 2002, na Casa Pia de Lisboa 686 crianças e jovens estavam acolhidos em regime de internato (143 estudavam fora dos Colégios da Casa Pia); 4549 crianças e jovens frequentavam a Casa Pia de Lisboa em regime de semi-internato (57 em Berçário/Creche, 284 em Educação Pré – Escolar, 1955 em Ensino Regular, 2044 em Ensino técnico e Profissional, 28 em Formação Profissional Específica, 181 em Ensino Especial/Reabilitação e Apoios Específicos; 198 em Intervenção Social e Específica). Devemos assim considerar que a população (que é ponderada a partir dos dados que caracterizam os utentes do internato e semi-internato, sendo descontadas as situações de crianças ou jovens que constam em mais de uma modalidade de acolhimento ou intervenção) correspondia a 4537 crianças e jovens.
Consideremos que o acolhimento em internato (Lares e Residências) era desenvolvido em 9 Estabelecimentos, num total de 32 Lares/Residências, a maior parte dos quais inseridos no espaço físico dos Estabelecimentos. Um dos lares, o Lar João José de Aguiar do Colégio de Santa Catarina respondia ainda a questões de emergência infantil no Distrito de Lisboa. A grande maioria dos Lares/Residências eram mistos (23) sendo que 8 se destinavam só a rapazes e 1 a raparigas. Em média cada Lar/Residência acolhia 20/22 crianças e jovens, observando-se uma variação entre os 13 utentes (valor mínimo) na Residência do Colégio António Aurélio da Costa Ferreira e os 43 utentes da Residência de Belém do Instituto Jacob Rodrigues Pereira. A classe modal mais representativa situava-se nas 20 crianças e jovens por Lar/Residência acompanhados por três educadores e 1 ou 2 monitores, para além de uma equipa técnica e uma equipa de apoio.
[36]É tão difícil entender que eram as necessidades da criança ou jovem que determinavam o tipo ou tipos de respostas institucionais a desencadear em favor do seu projecto pessoal de autonomia? É tão difícil entender o que significa a relação que se estabelece (em muitos casos) entre a pobreza, a marginalidade, a prisão e os conflitos com a justiça dos seus familiares e as crianças e os jovens?
[37]Pondere-se o número de educandos por Lar/Residência e por Colégio. Ver-se-á que não teria sido difícil dar continuidade ao processo de reestruturação que vinha acontecendo desde há uns anos. Continuidade numa linha correcta. Atente-se no que se estava fazendo no Reino Unido e na Dinamarca. Quem quis confundir a Casa Pia de Lisboa com grandes instituições de grande dimensão e lotação com mais de 100 crianças por unidade residencial ou era ignorante ou sabia (com má fé) o que estava a dizer.
[38] Pelo seu carácter marcadamente desfasado da realidade, merece aqui ser realçado o guião técnico “Lar para Crianças e Jovens” de Dezembro de 1996. Trata-se de um documento produzido pelos serviços da Segurança Social, a entidade que era obrigada legalmente a prestar apoio técnico, a acompanhar e a fiscalizar o cumprimento dos normativos em vigor, por parte das instituições, como resulta do artigo 8º do Decreto- Lei nº 2/86. Poderá ver-se sem qualquer tipo de dificuldade que se trata de um documento que não tem orientações quanto aos procedimentos e modelos de intervenção a desenvolver e que nem se preocupa com os critérios e os meios de avaliação que (todos o sabemos) deveriam ter um carácter sistemático.
- que acolhimento em instituição é significativamente diferente de acolhimento residencial e que uma escola é significativamente diferente de uma escola com internato e com semi-internato.
Será que não é já tempo para que estas questões se esclareçam relativamente à actividade da Casa Pia de Lisboa? Mas também não se percebe que quem determina que as respostas sejam uma ou outra, são as necessidades educativas especiais ou específicas das crianças e dos jovens? E também não percebe que a forma diferente de estar e de ser da Casa Pia de Lisboa radica em responder às questões urgentes e emergentes? E não se percebe que esta forma de estar e de ser está no seu código genético? E não se percebe que a sua atenção à realidade a levou a antecipar medidas de longo alcance?
Já agora que fique claro e para que se saiba:
- a criação do sistema de emergência para crianças e jovens na cidade de Lisboa teve origem numa proposta da Casa Pia de Lisboa feita ao Instituto de Desenvolvimento Social (IDS).
- a criação do sistema de emergência para crianças e jovens na cidade de Lisboa teve origem numa proposta da Casa Pia de Lisboa feita ao Instituto de Desenvolvimento Social (IDS).
Pelo interesse que poderá vir a revestir (para a história do sistema de promoção e de protecção de crianças e jovens em perigo em Portugal) transcreve-se, na íntegra, o “Protocolo de Cooperação” a que aquela proposta deu origem:
-“Protocolo de Cooperação. A protecção das crianças e jovens em risco implica um conjunto de acções que passam pelo estudo e diagnóstico de cada situação (individual, familiar e social) e a ponderação das soluções mais adequadas à natureza do caso. Sempre que possível tal estudo e a intervenção na situação de crise deverá processar-se de forma integrada procurando não desinserir a criança ou o jovem do seu meio familiar. Muitas vezes porém os casos são de tal modo graves que não se compadecem com a manutenção da criança ou jovem na situação em que se encontra, seja na família ou em qualquer outro contexto caracterizadamente de risco. Justifica-se assim o recurso a equipamentos com a natureza de “centro de acolhimento temporário” (CAT), destinado a garantir à criança ou jovem em perigo uma resposta alternativa temporária (máximo de 6 meses), enquanto se prepara um diagnóstico aprofundado da sua situação e se procura definir o seu plano de vida e o enquadramento mais adequado à realização desse plano. No entanto, apesar da criação da rede nacional de centros de acolhimento temporário, há ainda algumas regiões onde não existem equipamentos com esta natureza, o que dificulta a resposta imediata para crianças e jovens em situações em que, pela sua gravidade e perigo real ou iminente, não deveriam aguardar sequer um dia por uma medida de protecção que lhes proporcione, em condições de segurança, e bem-estar, um acolhimento a qualquer hora do dia ou da noite. Acresce ainda referir que o normal funcionamento desses centros de acolhimento não se compadece, pela instabilidade que acarreta, com o imperativo da resposta imediata sobretudo em período de descanso nocturno. Emerge assim a necessidade de implementar soluções alternativas e complementares para suprir as dificuldades enunciadas. Com as “ unidades de emergência” (UE) pretende-se atingir esse objectivo, o qual assenta na disponibilização permanente de camas para acolher crianças e jovens em situação de perigo, por um período máximo de 48 horas, devendo obrigatoriamente seguir-se-lhe um encaminhamento mesmo que transitório. Lançada uma experiência piloto, a nível nacional, poucos meses bastaram para se verificar que, no Distrito de Lisboa, o número de solicitações urgentes foi superior ao número de camas disponíveis nas UE. Tal como se constatou que, por dificuldades de concretização de encaminhamentos mais duradouros, o tempo de permanência nas unidades ultrapassou largamente as 48 horas inicialmente previstas, o que de imediato desvirtuou o conceito de UE e bloqueou as possibilidades deste tipo de resposta. Importa por isso encontrar uma forma de funcionamento integrado e coordenado de todas as estruturas públicas e particulares, existentes no distrito de Lisboa, que rentabilize os recursos de forma a garantir um verdadeiro sistema de acolhimento de emergência neste distrito. Atendendo a que, em matéria de crianças e jovens em perigo, se destaca no distrito de Lisboa a intervenção desenvolvida pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e pela Casa Pia de Lisboa, em articulação com os serviços do Centro Regional de Segurança Social de Lisboa e Vale do Tejo e que cabe ao Instituto para o Desenvolvimento Social, no âmbito das suas atribuições próprias e como órgão executivo da Comissão Nacional de Protecção das Crianças e Jovens em Risco, a coordenação, supervisão e avaliação das respostas sociais, designadamente as inovadoras, é celebrado o presente protocolo entre: Primeiro outorgante: Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, representada pela Senhora Provedora, Drª. Maria do Carmo Romão Sacadura dos Santos. Segundo outorgante: Casa Pia de Lisboa, representada pelo Senhor Provedor, Dr. Luís Manuel Martins Rebelo. Terceiro outorgante: Centro Regional de Segurança Social de Lisboa e Vale do Tejo, representado pela Presidente do Conselho Directivo, Drª. Maria Manuel Sales Godinho. Quarto outorgante: Instituto para o Desenvolvimento Social, representado pelo Presidente do Conselho Directivo, Dr. Edmundo Emílio Mão de Ferro Martinho, que se rege pelo disposto nas seguintes cláusulas:
Primeira. É criado o Sistema de Acolhimento de Emergência para o Distrito de Lisboa que assenta em quatro eixos: 1. Constituição de uma equipa de acolhimento de emergência. 2. Criação de uma unidade de emergência. 3. Organização das respostas para a saída da unidade de emergência. 4. Acompanhamento, coordenação e avaliação do projecto.
Segunda. 1. A equipa de acolhimento de emergência é o garante operativo de coordenação e gestão, responsável pelo funcionamento da Unidade de Emergência durante 24 horas do dia, nos 365 dias do ano, para onde são canalizadas todas as situações de acolhimento de emergência do distrito de Lisboa. Compete a esta equipa decidir, no prazo máximo de 48 horas, o encaminhamento subsequente da criança ou do jovem, o qual pode passar por: a) Regresso à família se entretanto tiver ocorrido alteração de situação que o aconselhe; b) Acolhimento num CAT para realização do diagnóstico e encaminhamento alternativo; c) Acolhimento em lar se a avaliação da situação permitir, desde logo, perspectivar esta solução como a mais favorável. 2. A equipa é constituída por dois técnicos de serviço social e um psicólogo e funciona em permanência assegurando a disponibilidade de um dos seus elementos nas 24 horas do dia. A equipa integra ainda um jurista a tempo parcial, a quem compete a assessoria técnico-jurídica, nomeadamente e sempre que seja necessário facilitar a articulação com os tribunais, comissões de protecção de menores e autoridades policiais. 3. A equipa é integrada funcionalmente no Centro Regional de Segurança Social de Lisboa e Vale do Tejo e fica localizada no Centro de Estudos de Apoio à Criança e à Família.
Terceira. A Unidade de emergência é constituída por um número de camas permanentemente disponíveis, a cativar em casas de acolhimento temporário e lares da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, da Casa Pia de Lisboa, do Centro Regional de Segurança Social de Lisboa e Vale do Tejo, neste caso abrangendo os lares das Instituições Particulares de Solidariedade Social que têm acordos de cooperação com o Estado.
Quarta. 1. Atendendo à necessidade de imprimir fluidez ao global funcionamento do sistema, as entidades outorgantes acordam em assegurar as “saídas” da emergência garantindo uma linha de continuidade e complementaridade à UE, para aquelas situações que exigem o prolongamento do acolhimento tendo em vista a realização de diagnóstico e consequente encaminhamento alternativo. 2. Com este objectivo, as referidas entidades que integram o sistema de acolhimento de emergência e que são por ele co – responsáveis, disponibilizam e garantem também vagas para as valências de acolhimento temporário e de lar.
Quinta. Cabe ao Instituto para o Desenvolvimento Social (IDS) enquanto entidade executiva das decisões da Comissão Nacional para a Protecção de Crianças e Jovens em Risco (CNPCJR) e também no âmbito das suas atribuições próprias, a responsabilidade pelo acompanhamento, coordenação e avaliação do sistema de acolhimento de emergência.
(Seguem-se as assinaturas dos Responsáveis pelas Entidades outorgantes e a Homologação pelo Ministro Eduardo Luís Barreto Ferro Rodrigues, em 17 de Março de 1999).
[40]Em 2002 o processo de admissão em internato tinha carácter centralizado (ressalve-se o processo de admissão de crianças e jovens surdos e surdocegos que era iniciado em cada um dos colégios, como facilmente se entenderá) e era gerido por uma equipa de admissões que não só respeitava a lei em vigor (a intervenção da Casa Pia de Lisboa era de segunda linha, atente-se!) quanto geria as vagas existentes nos lares/residências. Não é que depois do início da crise na Casa Pia de Lisboa, a Segurança Social passou a ter “uma equipa de gestão centralizada de vagas” para a colocação das crianças e dos jovens nas instituições?
[41]Esclareça-se que os filhos dos funcionários matriculados e frequentando ensino regular ou cursos profissionais, eram os únicos integrados num regime específico e residual de externato. (Esta informação pode ser confirmada na aplicação informática que era utilizada).
Nestas páginas é publicado um artigo do Professor Doutor António Nóvoa, A pedagogia, os professores e as escolas: há tanta coisa a mudar nos anos 90!
Leia-se (página 85) e pondere-se na sua actualidade vinte anos depois:
- “A autonomia das escolas não se concede, nem se decreta: conquista-se. Um olhar rápido sobre a realidade escolar portuguesa desvenda-nos situações muito distintas e, se é inegável que muitas escolas possuem já as condições técnicas e os recursos humanos necessários a uma gestão autónoma, muitas outras têm ainda um longo caminho a percorrer. Era útil que os decisores políticos estivessem atentos a esta situação: neste domínio (como, aliás, em todos os outros) a Reforma do Sistema Educativo deveria preocupar-se menos em inventar soluções “miraculosas” a adoptar pelo conjunto das escolas, assumindo-se prioritariamente como um processo de optimização das realidades já existentes e de facilitação das experiências inovadoras. O desafio que se depara às escolas neste princípio dos anos 90 parece claro: criar as condições que lhes permitam ir construindo, segundo ritmos próprios, modelos diversificados de gestão e de organização no quadro de uma progressiva autonomização. Mas isto obriga-nos a admitir que as escolas são diferentes e a romper com uma visão uniformizada do sistema de ensino. A dinamização educativa das comunidades escolares deve basear-se no desenvolvimento de “projectos dos estabelecimentos de ensino”, verdadeiro instrumento técnico e político de exercício de uma autonomia contextualizada.
[43]Também por esta razão não é legítimo diabolizar o internato que foi a base de grandes inovações pedagógicas. Diga-se, de passagem que, antes de se fazerem afirmações precipitadas talvez valesse a pena revisitar alguns autores que desenvolveram estudos sobre o internato:
- Anton Makarenco (1933/37), R. Spitz (140/65), J. Bowlby (1950/69), E. Goffman (1970), J e B. Tizard (1971), F. Carugati (1979), P. Giorgi (1982), Richards (1983), M. Berger (1998), entre outros.
Verificar-se-ia que enquanto alguns autores centram os seus estudos na questão institucional (e consequentemente no tipo de actividades que se desenvolviam e nas quais se destaca o tipo de organização do ensinar e do aprender), outros se preocupam com os sujeitos internados:
- por isso manda a prudência que se estabeleça uma ponte entre as duas perspectivas, antes de se fazerem afirmações cujo sentido pode ser, não terem qualquer sentido.
- por isso manda a prudência que se estabeleça uma ponte entre as duas perspectivas, antes de se fazerem afirmações cujo sentido pode ser, não terem qualquer sentido.
[44] Conferir Jorge Ramos do Ó, A Casa Pia e o dispositivo da escola moderna, Lisboa, 2005: “Ensino integral. O que, na minha perspectiva, começa por fazer da Casa Pia uma instituição precursora da modernidade pedagógica é a consciência, desde muito cedo plasmada, de que a sua missão estaria não apenas em instruir os seus alunos quanto sobretudo educá-los, em equipá-los social e moralmente. O conceito de polícia encaixa perfeitamente nesta mundividência e merece um comentário sobre a construção histórica do seu conteúdo. Na verdade, desde finais do século XVIII que o Estado moderno assumiu o propósito central da informação – dir-se-ia racional – sobre os níveis de prosperidade do reino e dos que nele habitavam: os autores coevos passaram a falar, indistintamente a partir do vocábulo polícia, de uma ciência do governo e da felicidade e da necessidade de proteger a civilização contra as suas ameaças sociais. Ora, o que interessa compreender é que foi esta a via de identificação que o Estado encontrou para tocar directamente a existência individual dos cidadãos. Não choca assim que, quando em 1780, o desembargador Pina Manique foi nomeado Intendente Geral da Polícia e da Corte, logo tenha criado a Casa Pia como uma instituição que faria prevalecer a educação sobre a repressão e tenha associado a ela a ideia pedagógica da devolução social do criminoso ou desviado. Era chegada a hora do reparar, corrigir, reabilitar, regenerar.
A passagem do tradicional ler-escrever-contar para um trabalho inteiramente diverso sobre todas as faculdades da alma do aluno – a inteligência, a sensibilidade e a vontade na terminologia cunhada pelo discurso filosófico que se enraíza a partir de meados do século XIX no campo educativo – é, fora de dúvida, a grande fractura histórica que viria no mundo ocidental a separar também a velha da nova escola. Com efeito, só por desconhecimento do que se foi construindo no interior da Casa Pia é que se pode, como até aqui, falar da construção, entre nós, de um dispositivo de educação integral do aluno sem referir a experiência antecipadora que ela protagonizou, não se diga desde finais de Setecentos, mas pelo menos a partir do momento em que Passos Manuel, corria o mês de Novembro do ano de 1836, nomeou José Ferreira Pinto Basto, para administrador da instituição ou, ainda talvez com mais propriedade, quando Fontes Pereira de Melo, 23 anos volvidos, entregou o governo da Casa Pia a José Maria Eugénio de Almeida”.
[45]Fixe-se que é esta sua natureza que determinava a existência de uma Provedoria, muitas vezes considerada de forma errada, apenas como uma forma de direcção e de gestão administrativa burocratizada e centralizada.
[46]Na Casa Pia de Lisboa, no que se refere à frequência do semi-internato, aplicava-se uma tabela de comparticipações familiares (comparticipações apuradas a partir do rendimento familiar) com 17 posições. Os alunos na posição 1 frequentavam os Colégios da Casa Pia de Lisboa gratuitamente e ainda com direito a benefícios (passe, material escolar e outros). Façamos uma ligeira pausa para pensar e tirar conclusões comparando o número de alunos nas posições 1 e 17, no ano lectivo de 2000/2001, por exemplo: “Colégio de Pina Manique – total de alunos - 1438: P1 – 773 alunos e P17 – 96 alunos; Colégio D. Maria Pia – total de alunos – 738: P1 – 589 alunos e P17 – 2 alunos; Colégio Nuno Álvares – total de alunos – 635: P1 – 499 alunos e P17 – 2 alunos; Colégio de Santa Clara – total de alunos – 355: P1 – 196 alunos e P17 – 8 alunos; Colégio de Nossa Senhora da Conceição – total de alunos – 482: P1 – 482 alunos e P17 – 17alunos; Colégio de Santa Catarina – total de alunos – 98: P1 – 68 alunos e P17 – 1 aluno; Instituto Jacob Rodrigues Pereira – total de alunos – 173: P1 – 94 alunos e P17 – 15 alunos; CEAS – total de crianças – 119: P1 – 119 alunos e P17- 0 crianças; Colégio A. A. Costa Ferreira – total de alunos – 26: P1 – 18 alunos e P17 – 1 aluno; Escola Agrícola F. Margiochi – total de alunos – 90: P1 – 62 alunos e P17 – 2 alunos.
Os números falam por si, verdade?
[47]Destaca-se o documento interno “Admissão de menores na Casa Pia de Lisboa – Critérios, processos e competências” que foi aprovado em reunião dos Conselhos de Direcção e do Conselho de Ex-Alunos, em 19 de Outubro de 1994. Nele constam os 7 critérios para admissão em regime de Internato, ordenados por prioridades:
- 1. Inexistência de família. 1.1. Orfandade completa. 1.2. Orfandade parcial, em que o progenitor existente não assegura a educação da criança. 2. Abandono de facto ou funcional por incapacidade permanente ou temporária (hospitalização, doença prolongada e outras) dos familiares. 3. Rejeição assumida ou camuflada. 4. Conflito com o meio familiar (ou social) de que resultam situações de perigo físico ou moral. 5. Necessidade de actuação educativa especializada (surdos ou surdocegos). 6. Residir no Distrito de Lisboa. Excepcionalmente poderão ser admitidos menores oriundos de outros Distritos que não o de Lisboa, desde que os serviços oficiais do distrito de origem provem não ter resposta adequada para o caso em apreço. 7. Em igualdade de circunstâncias dar-se-á prioridade aos candidatos menores de 12 anos.
Quanto ao processo de selecção, diz o mesmo documento:
-“Os pedidos e/ou propostas de admissão em regime de internato (…) serão sempre objecto de um estudo específico a cargo de uma equipa de admissões (…) que deverá determinar da justeza do pedido e avaliar o grau de urgência.”
Refira-se que desde o ano de 1993 a Equipa de Admissões apresentava num relatório anual (ano civil), os dados relativos ao número e características dos pedidos de admissão em internato dirigidos à Casa Pia de Lisboa. De ano para ano iam sendo introduzidas algumas alterações na concepção da sistematização dos dados, visando o seu aperfeiçoamento. Mesmo assim, é possível perceber a forma, organizada e correcta como a Casa Pia de Lisboa actuava cinco anos antes da publicação da lei de promoção e protecção de crianças e jovens em perigo e da lei tutelar educativa.
[48]Ao longo do “Processo Casa Pia” a comunicação social foi confundindo, sistematicamente, a Casa Pia de Lisboa com o Colégio de Pina Manique e isso não é verdade.
[49] Vale a pena rever e reler a lei e nesse sentido consulte-se, Tomé de Almeida Ramião, Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, Quid Juris, Lisboa, 2010.
[50]Lê-se na acta nº 85 da reunião, realizada no dia 5 de Julho de 2002, do Conselho de Direcção da Casa Pia de Lisboa:
- “O Director dos...., procedeu a uma leitura cursiva do 1º Relatório Preliminar referente à Caracterização Sociográfica em Acolhimento em Internato na Casa Pia, que foi acompanhado pelos presentes, portadores do referido relatório, que havia antecipadamente sido distribuído. Informou que o documento é provisório, foi feito a partir de um conjunto alargado de dados e que a apresentação final do estudo ocorrerá até final do ano”.
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