Nas obras de arte viajam segredos: um deles, o significado do pormenor

Leonardo Da Vinci foi o primeiro a reparar que o pormenor tinha significado, alguma vez pensaste em tal?, perguntou-me de supetão a minha consciência crítica. Nada não, nunca em tal pensei, mas sei que ele tinha a paixão do saber, adiante, estou disposto a ouvir-te perorar à volta do assunto, enquanto aprecio o verniz luminoso da sombra que sobre ti o sol derrama. Ora muito bem, interrompeu-me, entre nós vive o "Efeito Casimir", vamos lá então, era o pormenor, a articulação da natureza, que fascinava Leonardo Da Vinci; porque assim era, quero chamar a tua atenção para um belo retrato (inspirado na Cecília Gallerani) que Leonardo pintou pouco depois de ter chegado a Milão vindo de Florença: a "Dama com arminho", um retrato mui cruel. Cruel?, atrevi-me. Isso, ripostou teatral, mui cruel se o comparares com qualquer outra das delicadas e elegantes, embora estúpidas, cabeças que o Renascimento pintou. Eu, moita carrasco, deixei-me arrastar por pensamentos desencontrados. E ela: olha o retrato com mais atenção, confirmarás que Leonardo misturou o crânio por detrás da fronte da rapariga com a cabeça do arminho e os ossos da mão dela com a pata do arminho. Só falta ouvir-te dizer, arrisquei, que o retrato mostra menos o pintor e mostra mais o investigador, que o retrato é menos uma semelhança e mais um trabalho de descoberta e que até é um esboço de uma pesquisa de descoberta de anatomia e de carácter e que nas obras de arte viajam segredos. Olha-me este!, suspirou ela em jeito-maneira de não eu ouvir, este saiu-me melhor que a encomenda!, será que ele (ele sou eu) também terá intuído que o crânio do arminho e o crânio da rapariga, virados ambos para o mesmo lado, são tão semelhantes, tão semelhantes como se toda a teoria da evolução (qual escultora invisível) estivesse contida no retrato?, quão tão pouco perspicaz me saiu! Embatuquei de rosto atoleimado, como sob o reflexo de um caramanchão de glicínias em dia de epifania.