Toda a memória se forja no tempo presente



De facto assim é!, de facto assim é, ouvi, garanto que ouvi, a minha consciência exclamar. Assim é o quê?, ripostei interessado. Assim é que a memória se forja no tempo presente, ontem o confirmei na leitura dos textos sobre as tuas imaginadas viagens a Ítaca, ainda rabisquei nem sei bem o quê no meu caderninho preto argolado. Se entendi bem, atrevi-me, a única maneira de se ter experiência de um determinado momento é através da memória, assim a modos que por meio de um processo de conexões que dão sentido a esse momento, tipo um esboço de desenho. Ou seja, completou ela, a memória é algo que vive no momento presente, a memória é algo muito vivo, a memória é o que somos. Pela certa, arrisquei, não alinhas com quem diz que existe um dualismo corpo-mente. Nem pensar, de modo algum, retorquiu, a ideia de que as pessoas são diferentes dos seus corpos, que os seres humanos que pensam são diferentes dos seres humanos que sentem, é um erro crasso, de palmatória, ui, vida minha!, e aquela parvoíce de que as mulheres sentem e os homens pensam?!, vou ali e já volto, primeiro o Iluminismo e depois os Direitos Humanos já a mandaram para o galheiro. Posso deduzir então, interrompi, que o reconhecimento de que a mente e o corpo agem juntos, ainda que o façam de maneira diferente, é fundamental para entender a biologia e para os seres humanos se entenderem a si mesmos como animais humanos, mas voltando à memória, a memória é algo muito individual, certo? Errado, trauteou, tu não podes separar o teu cérebro das influências culturais, familiares e sociais que o rodeiam, essas influências permanecem em ti e estruturam muitas das tuas crenças, e mesmo que percas essa crenças, as estruturas que elas criaram no teu cérebro permanecem, regista que o conhecimento é formado por meio de camadas de conhecimento prévio, regressa aos teus textos e saberás como estás (re)visando o passado no teu processo de memória. Sim, percebo, respondi perguntando: e que pensas do facto de os seres humanos mentirem a si mesmos criando falsas memórias? Ó meu douto interlocutor privilegiado, suspirou num tom melodioso, é natural e saudável criar falsas memórias agradáveis, os seres humanos têm necessidade de se sentir bem, aí tens uma forma inteligente de mandar as depressões às malvas, aquilo que se denomina de psicologia positiva é isso mesmo, provocar impulsos de optimismo pintado a cores vivas no pensamento. Talvez sim, abalancei-me já sem fôlego, mas não concordo na totalidade, acredito que sentir-se desconfortável também é bom, faz parte da natureza humana fazer frente aos próprios demónios. Isso mesmo, atalhou ela, desde que seja em quanto baste, adiante, guarda só para ti (com excepção do mundo inteiro) que de certa forma toda a memória é falsa, e ademais: ancorada no passado fragmentária e fugidia, toda a memória se forja no presente para dar sentido ao futuro. Touché!, suspirei.


Adenda, com sugestão de consulta adicional e memória.

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