Neuro-soteriologia, foi o que ela disse?

















A vida vai sendo um milagre mas a morte é ainda um mistério, que te parece este mote para iniciarmos uma conversa assim a modos que vadia, vadia sim, mas sempre à roda dos saberes das neurociências sustentadas na nova teoria quântica em que os átomos são instrumentos musicais. Parece-me bem, vamos a isso, respondi à minha consciência crítica, acredito que seja muita areia para a minha camioneta, que tal começar a conversa a partindo de uma obra de arte, queres sugerir uma obra de arte que faça de objecto transitivo inspirador? Bem pensado, observou ela, atenta numa pintura de Hieronymus Bosch do fim do século XV, aí a tens traduzida numa imagem portentosa, fixa-te agora no túnel de luz que é antecâmara de terra incognita - quando tiveres mais tempo estuda o simbolismo da pintura completa - e começa a falar. Não me ocorre nada, nadica de nada, a não ser que a luz não é idêntica à nossa percepção da luz, disparei, enquanto olhava a imagem que não conhecia. Que vida a minha!, suspirou, conversas com este (com este?!, que atrevida!, suspirei) parecem chão que deu uvas, ainda não sabe que a arte, que só a arte reflete o funcionamento do cérebro humano. E então?, atrevi-me, lá ao longe uma lenta melodia de um oboé fazia ondular um bando de estorninhos. E ela: então não é que vários estudos científicos mostram que uma em cada cinco pessoas, ressuscitadas após um ataque cardíaco, declara ter vivido uma sensação de abandono do corpo e de ter visto passar toda a sua vida e até ter falado com parentes seus já falecidos?, a pintura de Hieronymus Bosch sugere com o túnel de luz, destinado aos abençoados, um tempo de quase morte, pois não sugere? Hum!, mas tal não será apenas o resultado de falta de oxigénio no cérebro?, alvitrei baralhado e dizendo de mim para comigo que os pensamentos são uma função do cérebro. Se assim fosse, interrompeu-me, porquê só uma em cinco pessoas ter essa experiência?, e sim, os pensamentos são uma função cérebro, mas é uma função produtiva ou uma função permissiva? A tua pergunta, arrisquei, é se o cérebro produz a mente como o fígado produz a bílis ou, se pelo contrário, o cérebro recebe a mente da mesma forma que a rádio recebe as ondas eletromagnéticas? Mais ou menos, retorquiu com ar sério, esta conversa vadia não vai chegar a bom porto, já percebi que ainda andas a apanhar bonés, ainda não entendeste que o mundo é uma obra de arte e por isso a vida vai sendo um milagre, fraca e zonza figura a tua nos meandros de funções de ondas e de nuvens de probabilidades e complementaridade, adiante, a verdade é que nos dias que correm tanto a ciência como a religião se confundem na neuro-soteriologia actual: a religião quer salvar a alma e ambiciona levá-la para o céu e a ciência quer levar a mente para uma nuvem, a mente já é uma nuvem de probabilidades e as nuvens de probabilidades calculam-se a partir das funções de onda. Embatuquei espreitando borboletas coloridas dentro de um limoeiro, sabia lá eu o que ripostar!, enquanto ela, divertida, trauteava que toda a gente diz que os meus olhos são os olhos dela, e me admoestava: regista ainda que a profecia de que a consciência será imortalizada como algoritmo em chips de silício nunca acontecerá, eu mui bem o sei e o garanto. Neuro-soteriologia, foi o que ela disse?

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