A natureza escreve direito por linhas tortas
Há
dois dias atrás, senti (já passava da meia-noite), a minha fada chegar de
mansinho e quase sem pisar o chão (ela não declina noutros a tarefa de me deliciar e de me surpreender), dizendo que lhe apetecia conversar um pouco comigo. Reclamei, impaciente, pelo
facto de ser já o começo de um novo dia e de eu necessitar de dormir e de descansar. Meu caro, exclamou divertida, essa é a desculpa
esfarrapada (nunca diga estafada, advirto-o) dos seres preguiçosos e não educados que declinam a nobre elegância do estar;
se eu preciso de conversar consigo, é óbvio que é por ser importante e urgente; ainda devia
agradecer-me o meu desvelo. Concordará, aventurei-me
a dizer sem convicção, que não é
a hora mais adequada para uma conversa que, quase aposto, vai passar pelas suas
últimas preocupações sobre a surpreendente estrutura flexível do cérebro
humano. Reconheço, respondeu-me, que
às vezes até parece que sou muito frontal, ansiosa e agressiva consigo mas, acredite, eu admiro-o porque anda
sempre por perto dos temas importantes e (pasme-se!) sabe interpretar o rasto das sílabas nas minhas palavras mesmo que, por vezes, sem a música dos acentos; e isto é tão verdade como eu pressentir em si o espesso vinho das vozes antigas ou um desejo represado. E, desta vez, voltou a
estar muito pertinho do que eu lhe queria falar hoje. Vou tentar adivinhar, interrompi-a de chofre, o que me vai
dizer; vai dizer que ao mesmo tempo que a neurociência, entusiasmada, revelava a surpreendente
estrutura flexível do cérebro, alguns cientistas também começaram a ficar interessados
num princípio determinista muito poderoso, a genética. E vai dizer-me ainda
mais, arrisquei. Vai garantir-me que
são esses cientistas que estão na origem de uma ideologia biológica, cujo
desenvolvimento lógico culminou no Projecto do Genoma Humano. A criatura tomou
conta da criadora! - Ouvi-a rir e
murmurar. Ao mesmo tempo, ia-me dizendo pausadamente (quase em jeito de confidência) que estava admirada com a minha perspicácia e que,
de facto, o Projecto do Genoma Humano, iniciado em 1990, constituiu uma
tentativa de descodificar a narrativa genética da espécie humana… E, se tal se
conseguisse, cada cromossoma, gene e par de base seria sequenciado e entendido…
Era uma hipótese optimista… Calado e expectante, como me convinha, tinha-me
perdido, preso no seu riso e nos seus olhos grandes (ninguém é senhor da luz detida no olhar, creio), e tinha deixado de seguir o que ela dizia. Bruscamente,
senti-me abanado, vi (bem visto) o dedo indicador da sua mão maneirinha na
ponta do meu nariz e registei, palavra por palavra, o que ela trauteou zangada: tudo aquilo ruiu, meu caro, porque a natureza escreve direito por linhas tortas;
não é que mais de 95 por cento do ADN humano é constituído por intrões, ou seja,
vastas extensões de contra senso repetitivo e não codificável? Ainda tive
tempo para lhe ripostar, envergonhado e apalermado, dizendo que se é como ela
diz, então, o genoma humano é assim a modos que uma espécie de texto que
precisa de notas de rodapé. Claro que assim é, ouvi ainda a sua voz que se levantava acesa na manhã por detrás de uma estrela matutina; numa espécie de assobio distante e desafiando o vento. Ouvi e registo palavra com palavra: porque, meu caro, o grande triunfo do ADN é que ele nos faz sem nos determinar; nunca se esqueça. Surpresa minha! Quando me preparava para dormir, deparei-me com uma página de escrita em papel salmão, dobrada e em cima da almofada; e onde, numa letra redondinha, se pode ler: "Gostei que tenha conversado comigo e, sobretudo, adorei que se tenha perdido nos meus olhos grandes; no seu sono de hoje, prometo-lhe, haverá um rumor de mim que não vai dormir; e (que sorte a sua!) se desatar os nós cegos do frio, até já pode armar-se em esperto e
explicar a outros como é que a natureza escreve direito por linhas tortas. Eu não me importo que me plagie; até gosto porque, para mim, viver é iluminar de luz rasante a sua forma de ser e de estar na vida."
Sobram-me os olhos dela e a cantilena dos ralos! – Desabafei com os
meus botões.
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