Primeiro foi o ovo ou a galinha? O movimento é a essência da vida













Admito que tenha sido eu, acontece tão só que não me recordo, mas só podia ter sido eu. Outra vez!, suspirei, a minha consciência a responder no momento certo, disse de mim para comigo, quando ouvi a resposta à pergunta que eu tinha acabado de formular, esta: quem disse que uma galinha é um organismo que um ovo criou para produzir ovos? Se admite ter sido, disparei, então aguente-se, que eu quero saber mais, vamos lá: tudo bem, mas uma galinha é ao mesmo tempo um organismo entre outros seres no mundo e é uma porção de carne, é um corpo vivo e sensível, certo? Certo, olha a novidade!, exclamou ela, e não acontece o mesmo consigo? Encabrestei-me: que me diz?, que também eu sou, ao mesmo tempo, um organismo como os outros seres e um corpo vivo e sensível, e que o corpo é a modalidade singular da minha pertença ao mundo? Isso mesmo, interrompeu, aí tem a razão que também me leva a amadrinhar a metafísica, a metafísica longe de ser abstrata e árida é viva e poética, já que apela aos sentimentos mais profundos. E daí?, desafiei. Daí que deva corrigir a sua forma de pensar, ou seja, deixe de olhar para a vida a partir do corpo, olhe para o corpo a partir da vida, é a vida que junta a pertença à diferença: viver ora tem um sentido intransitivo - ser um ser vivendo no mundo - ora tem um sentido transitivo - viver qualquer coisa, fazer uma experiência, regressar ao tempo dos fiacres para apreciar uma obra de arte, garimpar uma felicidade nobre, inteligível e exacta. Ups!, senti-me a tentar mimar no fundo de mim mesmo os movimentos transitivo e intransitivo. Adivinhou-me o pensamento, e: nem mais, Deus seja louvado!, suspirou, não só intuiu que o movimento é a essência da vida quanto, em duas penadas, resolveu um dilema antigo: primeiro foi o ovo ou foi a galinha?; já entendeu que primeiro foi o ovo, céus, gosto! Ainda eu armadilhava uma pergunta - a guicheza à proa de um sorriso matreiro põe-me os nervos em franja - e já ela me dizia: recordo-me bem, recordo-me de numa conversa de pé de orelha com o Denis Diderot, aí por volta do ano 1770, com os meus olhos de pássaro a faiscar e prestes a soltar-se, o ter arrumado intelectualmente, assim: “vedes este ovo?, com isto se derrubam todas as escolas de teologia e todos os templos da Terra. Belisquei-me, e: a minha consciência falou com Diderot? Não! Claro que sim, não só falei com ele quanto ando há uns tempos enfronhada numa investigação fabulástica, esta, investigação que mais não é que uma série de ideias elevadas ao espírito, retorquiu ela soltando uma gargalhada estrepitosa muito dela.

Adenda

Há muito que o sei, mas hoje deixei de ter dúvidas. A presença da minha consciência acrescenta à minha casa com janelas de guilhotina algo extraordinário: uma espécie de aparelho sensitivo, um tipo de rede nervosa, que se ramifica peça por peça e que traz excitações constantes ao meu coração. Tenho que ter uma conversa com o cardiologista, aposto que ele disto não sabe ele da missa a metade. Daqui a meia horita irei ouvir a música de Erik Satie enquanto passeio no campo, sinto naquela música vestigios de mim e da minha consciência, bom dia!

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