Através dos sonhos o cérebro quebra rotinas e escapa à realidade
É mesmo como lhe conto, sem tirar nem pôr, foi assim: ontem deixei-o a dormir a sono solto (que quer, sou assim, que se há-de fazer!), fui dar uma volta pelas avenidas novas dos seus últimos sonhos. Vi numa das montras de uma galeria o quadro que agora lhe mostro, assinado pelo autor. Não fui de modas, entrei, e disse à galerista: aquela no quadro sou eu, sou eu aquela princesa, sou eu uma princesa à passear à chuva, só faltam as folhinhas em forma de coração do sentimento. E a galerista, atrevida e com vivacidade: que surpresa nenhuma!, como se eu o não soubesse, estava à sua espera, o quadro é seu, aí o tem, fique com ele antes que leve sumiço. É preciso ter muita lata, atordoado desabafei de mim para mim: a minha consciência, quando me apanha a dormir, passeia nas avenidas dos meus sonhos?!; homessa, essa agora, então e eu?, eu fico desamparado e abandonado à quietude das coisas, deitado numa cama centenária de madeira de palissandro enquanto ela se pisga para passear? Que ciumento e que lerdinho e que caturro é!, ciciou divertida e astuta, não entendeu ainda que o carácter alucinatório dos seus sonhos não é um erro, não entendeu que esse carácter alucinatório serve para evitar que o seu cérebro se adapte demasiado ao que é conhecido e tão só recorra às suas fontes diárias de aprendizagem, bastas vezes fontes de água contaminada tipo dar aos gestos o calor postiço da hipocrisia? Fontes de água contaminada foi o que disse?, incomoda-me deveras esse seu ar de guicha, retorqui, e sem receio de soltar uma asneira: é capaz de provar o que diz? Minha Nossa Senhora dos Aflitos!, exclamou, deixe de tomar tudo ao pé da letra e oiça-me com atenção: quando alguém diz que "ler um romance ou uma novela permite escapar da realidade" diz bem, diz bem porque não se trata de uma figura de retórica, o que esse alguém diz (pese embora a maior parte das vezes o não saiba) é que existe um espantoso "mecanismo" cerebral e é através dele que o cérebro supera a repetição dos padrões rotineiros, entendeu? Não sei se entendi, ouvi-me a dizer, e perguntei à queima roupa: também os sonhos (à semelhança dos romances e das novelas) activam esse dito "mecanismo" cerebral? Nem mais e nem menos, trauteou num tom pueril, e escancarando as portas da alma: espertinho!, mas como ainda tem um montão de dúvidas e como (para querer saber mais) gosta de temperar a sua curiosidade, demore-se por aqui algum tempo, apreciará a importância de (de ora em diante) conhecer de antemão esse escondido "mecanismo" cerebral: assim confirmará o que eu lhe digo, o que eu digo só a si (com excepção do mundo inteiro, multiverso incluido, alô, alô Michio!). Tenha um muito bom dia!, vou para outras lidas, ah!, mas sim, é verdade verdadinha, os sonhos continuam a ser ainda um mistério para a neurociência.
Adenda ((ligeiramente (ou até não!) a propósito))
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