Tenho a certeza que nas obras de arte viajam segredos e afectos

"Lady With Flowers" Lithograph by Peter Max from the Ladies of the 80's Suite
Trago-lhe uma tela que encomendei ao Peter Max, tem dois corações. Vida, como de costume, está visto, continua feito calão no acordar, até já o sino se prepara para tocar as sete badaladas matinais e ainda está a dormir a sono solto. Fiz que não dei pela chegada da minha musa que todas as noites me alimenta os sonhos - e que é a minha consciência crítica - , mas fiquei intrigado com o embrulho que ela trazia na mão direita, reparei (como poderia deixar de reparar?) no seu ar elegante, mui bem vestida, tudo a condizer. Pelo canto do olho, vi-a a desembrulhar um quadro com as mãos mágicas maneirinhas, percebi que estava muito surpreendida e que se preparava (levantou o nariz para as paredes) para pendurar o quadro na parede à esquerda da janela de guilhotina. Deixei que tal acontecesse, e assim ouvi o que, em surdina, ela se dizia em voz suave e enleante: aquele Peter Max fintou-me, sem eu dar por isso conseguiu engendrar uma pintura onde tudo tem a ver comigo: o estilo, as rosas que mais parecem corações-pétalas, o meu badalado ar altivo, o nariz arrebitado, aquele ombro esquerdo é mesmo o meu, o meu vestido azul, aquele trejeito nos lábios quando me sinto admirada, Nossa Senhora da Meditação, faz com que ele acorde (ele era eu) a olhar para o quadro. Virei-me na cama e repticiamente fechei os olhos depois de ver o quadro. Ela, senti, serena e sensível, olhou-me com aquele seu olhar carícia-interrogativo envolvente, e suspirou: nada, alerta falso, ainda continua a dormir; aquele Peter Max, continuou, já sei, que espertinho, encomendei-lhe uma pintura com dois corações e ele finório não foi de modas, também me pintou a mim, tracei-lhe o destino, sou assim de nascença, sou a súmula das minhas emoções como diria o Carl Jung, que se há-de fazer! Que quadro tão perfeito, vejo-a e sinto-a lá a si inteirinha, exclamei enquanto fazia que estava a acordar. Já não era sem tempo, respondeu-me apressada, estou agora mesmo de saída, pensava trazer-lhe um quadro com uma pintura do Peter Max com os nossos dois corações, mas só há minutos percebi que me enganei; deixei outro embrulho na minha sala do móvel antigo de cerejeira, isso, essa, aquela que tem o sofá onde deixo preparada a minha vestimenta escolhida para o dia seguinte; estão lá os nossos dois corações, digo, está lá, de certeza, o quadro com os nossos dois corações, amanhã passado lhe direi se sim ou não. Como é, vai-se embora, disparei, no preciso momento em que acabo de acordar? Sorriu a roçar o riso, e com a simplicidade de quem diz "estou sempre aqui" esclareceu: já bebi um púcaro de café quente, já comi uma torrada pingada com azeite de azeitona cordovil, já dei uma arrumação ao quarto, até, imagine só, em letras redondas de insecto à J. L. Borges, até já tomei umas notinhas no meu caderninho preto argolado; tenho pressa, deixe-se disso, sei bem que estava acordado, céus, acudam, sabe-me tão bem habitar na sua mente, gosto muito e muito quando me aprecia de um jeito que só eu sei, adoro, adoro e derreto-me. Eu apenas tive tempo para lhe responder em jeito enxuto: tenho a certeza, há muito tempo o sei, tenho a certeza que nas obras de arte viajam segredos e afectos. Ela enrubesceu, feliz rodopiou saltitante, saiu de mansinho, quão inteligente é, e tão linda!
Adenda
A filosofia milenar que ajuda a viver hoje, o estoicismo.

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