Será que as emoções e os sentimentos têm lugar na vida política?
1. Foram ontem,
na Assembleia da República Portuguesa, aprovadas (na generalidade) a
proposta de lei das grandes opções do plano para o ano de 2020 e a proposta de lei do orçamento de Estado para o ano de 2020.
Quem teve a oportunidade de assistir a algumas intervenções de diferentes deputadas e deputados dos diversos partidos políticos, tem agora uma oportunidade de pensar mais bem (mais bem e não melhor) uma possível resposta a uma pergunta deveras importante, esta: será que as emoções e os sentimentos têm
lugar na vida política?
2. Precisemos, primeiro, a questão, recorrendo a dois filósofos (um filósofo
e uma filósofa) muito distantes no tempo e no pensamento, esboçando de seguida uma resposta à pergunta; depois, arrisquemos enriquecer o tema relendo um artigo (publicado num jornal diário) sobre a forma de estar (na vida política) do actual Presidente da República Portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa.
2.1. O filósofo, Immanuel Kant (1724 - 1804).
Pensava ele que
as emoções não têm o direito de cidade na vida colectiva e
política – registe-se que Kant foi um contemporâneo
fascinado pela revolução francesa (há quem diga que foi o
único acontecimento que interrompeu o seu passeio matinal). Em 1790,
na sua “Crítica da faculdade de julgar” declara que “todo o
afecto é cego” e evoca expressamente “o entusiasmo” - exemplo
chave num contexto revolucionário – considerando que o
entusiasmo é esteticamente
é um estado de espírito “sublime”, mas que moral e
politicamente é um estado de espírito desastroso: “o entusiasmo
não pode de forma alguma contribuir para a razão”. Abreviando…
De uma maneira geral, para Kant as emoções são problemáticas porque elas
variam de intensidade segundo os indivíduos, seja, a vida
política não deve reger-se pelo que é contingente e singular, mas deve orientar-se pelo que é incondicional e universal. Incondicional e
universal, pensava ele, é a razão: a razão estabelece as máximas
e os princípios a seguir; a razão sustenta e garante o
imperativo prático de racionalidade através do direito, direito definido
como “a limitação da liberdade de cada um em favor da liberdade
de outros”. Daí que, para Kant, as emoções não devam ter
lugar na vida política: o Estado de direito republicano (res
publica/coisa pública) é o garante do pacto social, pacto que
sempre está em vias de ser corroído pelas emoções e sentimentos privados.
2.2. A filósofa, Martha Nussbaum (1947
- ).
Para Martha Nussbaum, autora de um livro muito interessante, a separação entre o domínio do íntimo
e do privado (as emoções e os sentimentos) e o domínio público (a
vida política) não faz sentido. Entende ela ser necessário
politizar as emoções e “emocionalizar” a política. E tudo faz parte de uma constatação óbvia: as emoções e os sentimentos não
são neutros, elas e eles relacionam-se sempre com uma forma de
representar o mundo. Se algumas emoções separam, outras há que
unem: é o caso, por exemplo, da compaixão, da pena, do amor (só o amor pode superar o nojo e a vergonha), são as emoções e os sentimentos que se aproximam do ideal democrático da igualdade com a oportunidade de ser diferente. Daí que, para Martha Nussbaum, as emoções devam infiltrar a política e o direito, inspirando leis que lutem contra toda e qualquer discriminação. Vai até mais longe: crendo que as emoções e os sentimentos não são apenas reacções naturais mas que também são construídas e construídos socialmente entende que se podem aprender: assim sendo, as emoções e os sentimentos constituem o fermento e o carburante do melhor modelo político ao nosso dispor, a democracia.
2.3. Uma pergunta que abre para um esboço de uma possível resposta à pergunta inicial: durante o debate de ontem, na Assembleia da República, sobre as grandes opções do plano para 2020 e sobre o orçamento para 2020, ganhou o ponto de vista de Immanuel Kant ou a forma de pensar de Martha Nussbaum? Nem o ponto de vista de um e nem a forma de pensar de outra, dos dois, empataram. Aconteceu isso assim (a modos que) uma salganhada loquaz, pouco esclarecida mas bem intencionada. Salganhada loquaz, mas democrática, sem sombra de dúvida, registe-se, ainda que os números do orçamento tenham sido torturados pela esquerda e pela direita num cepticismo triunfante e com os mais raros adjectivos fugidios a tiracolo, aqui e ali com palmas e também com sorrisos coniventes bem e mal humorados à mistura: a lógica trituradora da férrea disciplina partidária tem muito que contar (com raras excepções de permeio, diga-se em abono da verdade)! A verdade verdadinha (o que em mim pensa está sentindo) é que ter coragem à beira de um precipício é arrepiar caminho, não é dar um passo em frente.
2.4. É agora o momento oportuno para revisitar este
artigo sobre
atitudes e comportamentos (formas de ser e de estar e afectos de encher o coração) do actual Presidente da República Portuguesa.
Adenda
Quem sabe, valha ainda a pena recordar o que em tempo escrevi, a fim de ponderar diferenças e semelhanças (e cópias e proximidades e distâncias) entre órgãos políticos eleitos - o Parlamento e o Presidente da República foram eleitos através de sufrágio universal.
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