O que é que Platão sabia sobre o cérebro?

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Isso mesmo, é como lhe digo, acredite, dias há em que até a franja me foge, fico assim a modos que não pode ser, pode lá ter acontecido, anos e anos a fio de estudos para aqui e para acolá, e eis-nos de volta ao ponto de partida de muitas das nossas conversas sobre o cérebro. A noite já ia alta mas eu ainda estava acordado e, pelo ar assertivo com que a fada que bem conheço me invectivava, gozei a certeza de que o objectivo da sua vinda era importante. Ora conte lá o que desta vez tanto a impressionou, atirei-lhe, enquanto de soslaio apreciava o seu porte distinto. Aperaltada como sempre, suspirei! Muito eu gostava que as minhas mãos fossem para si um vestido, arrisquei em voz baixa. Ela, sorriu divertida. Escusado será dizer que a minha manta de lã já tinha dona no mesmo tempo em que ela me dizia: oiça o que acabei de ler, assim: “Escuta, então, o que vou contar: em minha mocidade senti-me apaixonado por esse género de estudos a que dão o nome de “exame da natureza”; parecia-me admirável, com efeito, conhecer as causas de tudo, saber por que tudo vem à existência, por que perece e por que existe. Muitas vezes detive-me seriamente a examinar questões como esta: se, como alguns pretendem, os seres vivos se originam de uma putrefacção em que tomam parte o frio e o calor; se é o sangue que nos faz pensar, ou o ar, o o fogo, ou quem sabe se nada disso, mas sim o próprio cérebro, que nos dá as sensações de ouvir, ver e cheirar, das quais resultariam por sua vez a memória e a opinião, ao passo que destas, quando adquirem estabilidade, nasceria o conhecimento.” Ouvi com atenção, senti a diferença importante entre os porques e os por ques, e resolvi armar-me ao pingarelho: a sua citação é de algum autor, do início do século XX, impressionado com os estudos de Ramon Y Cajal sobre o cérebro. (...) E ela, ralhadoira perante marcas de ternura ainda frescas: está redondamente enganado, fique sabendo que a citação é uma fala de Sócrates no diálogo de Platão “Fédon”, diálogo escrito aí por volta do ano 400 antes de Cristo. Resignei-me sorumbático; de facto, olhar para a miríade de estudos sobre o cérebro, realizados no fim do século XX e início deste século XXI, e desconhecer o que Platão pensava (há mais de 2400 anos) tem que se lhe diga. Preparava-me para lhe responder, e já ela se despedia, dizendo que me deixava uma outra preocupação: gostaria que eu lhe explicasse como é que a água aguenta o peso de um barco grande e cheio de gente sem medo algum de se afogar. Respondi-lhe torto: quero é dormir, por hoje já chega, não se esqueça que essa manta é minha. Empinou-se de brios e deu de frosques de mansinho, e: era, esta manta de lã merina de ovelha churra era, digo, já foi sua, meu admirador de mim, e, céus, tanto eu gosto (que arrepios miudinhos, vida) das suas mãos vestido de mim. A remoer raios e coriscos, mas feliz e ainda nas nuvens, descansei-me: mantas há muitas, são horas de dormir ((e de sonhar com a única fada que não dorme (já a ouvi, a vi e a cheirei e...)), amanhã tentarei saber da liberdade e da ausência de medo dos passageiros num barco a navegar.

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