Há dias, hoje é um deles, em que me apetece viajar no tempo

Há dias, hoje é um deles, em que me apetece viajar no tempo ao encontro de gente e de palavras que se perderam e que vivem nas memórias da vida. Quando assim acontece, episódios e gente e momentos e cenários sobrepõem-se aos recantos e às ruelas que desembocam no largo da igreja que mora e se demora na frente da minha centenária janela de guilhotina, e eu escrevo o que vejo e sinto. Há quem diga que são sonhos meus, mas eu digo que são cenas de um filme real a preto e branco, a que adoro assistir uma e outra vez e outra vez ainda. Assim... Chamo ao calhas gente (que já partiu e que conheci) pelo seu nome, e elas e eles respondem à chamada. Que maravilha!, aparecem e retomam a vida de antanho, e falam em vozes que reconheço. Escuto-os e oiço-as com atenção, não pode ser!, trazem consigo os cheiros perdidos do seu suor e do estrume fumegante em cangalhas de pinho velho, e até sinto e experencio o odor do rosmaninho e das estevas e o sabor de nozes e dos figos secos. Vida!, com a gente que chamei, outros e outras vieram em companhia. Mãe de Deus!, olha aquelas a cochichar entre si, dizem que sabem de um tesouro escondido no Chão do Espírito Santo, murmuram avé-marias e a pousam as mãos nas cabeças dos cachopos que pedem “a sua bênção mãe-madrinha”, sua cabeça de cacheno rombo não sejas traquinas, resmungam elas. Jesus-Maria-José!, olha aqueles a descobrir-se respeitosos ao toque do sino e a desejar-me um fim de tarde na paz do Senhor, para vossemecês também, respondo, venham e vão com Deus. Não!, esfrego os olhos, assomam-se perto do chafariz e à boca da quelha-velha do forninho dois burros, um com cântaros de água e outro com uma carga de lenha de azinho, enquanto na casa do Ti Marcela o fumo da lareira se escapa pela telha-vã. Olha, olha, uma mulher de avental negro corre na rua com uma pinha a arder e uma outra esconde sob o avental o frango que assou no forno à surrelfa. Faz-se escuro, ouve-se o piar de uma coruja e ainda também o martelar do ferreiro ferrador, passa agora no largo um homem atoleimado (que não conheço) com um lampião pendurado num varapau. Que raio faz ele neste filme? Arreda mafarrico!, gritei-lhe, maldição, só podes ser tu, cretino enfatuado, o cheiro a enxofre não engana, põe-te a milhas ou não respondo por mim. Ó pernas para que te quero!, o filho do diabo, ranhoso a merecer azorrague no lombo, até batia com os calcanhares no traseiro tal era a miúfa. E das gargalhadas de toda aquela gente que acudiu ao largo da igreja para apreciar aquele trambolho a fugir? Nem digo e nem conto, nem que mo roguem um ror de vezes, é certo e sabido. 

Adenda 

As exclamações são da lavra da minha consciência crítica - ela não só não perde pitada do filme quanto sempre que lhe dá na real gana mete a sua colherada. Ela é assim, que se há-de fazer!

Comentários

  1. Em busca do tempo perdido.
    Será que era melhor termos ficado por aí?
    Obrigado Luís por ter voltado.
    JCDias

    ResponderEliminar

Enviar um comentário

Mensagens populares