Para Orpheu - Sentir é criar, in "Obra Inédita" de Fernando Pessoa
Sentir é criar.
Mas
o que é sentir?
Ter
opiniões é não sentir.
Todas
as nossas opiniões são dos outros.
Pensar
é querer transmitir aos outros aquilo que se julga que se sente.
Só
o que se pensa é que se pode comunicar aos outros. O que se sente
não se pode comunicar. Só se pode comunicar o valor do
que se sente. Só se pode fazer sentir o que se sente. Não que o
leitor sinta a pena comum [?]. Basta que sinta da mesma maneira.
O
sentimento abre as portas da prisão com que o pensamento fecha a
alma.
A
lucidez só deve chegar ao limiar da alma. Nas próprias antecâmaras
do sentimento é proibido ser explícito.
Sentir
é compreender. Pensar é errar. Compreender o que outra pessoa pensa
é discordar dela. Compreender o que outra pessoa sente é ser ela.
Ser outra pessoa é de uma grande utilidade metafísica. Deus é toda
a gente.
Ver,
ouvir, cheirar, gostar, palpar — são os únicos mandamentos da lei
de Deus. Os sentidos são divinos porque são a nossa relação com o
Universo, e a nossa relação com o Universo Deus.
[...]
Agir
é descrer. Pensar é errar. Só sentir é crença e verdade. Nada
existe fora das nossas sensações. Por isso agir é trair o nosso
pensamento.
[...]
Não
há critério da verdade senão não concordar consigo próprio. O
universo não concorda consigo próprio, porque passa. A vida não
concorda consigo própria, porque morre. O paradoxo é a fórmula
típica da Natureza. Por isso toda a verdade tem uma forma [?]
paradoxal.
[...]
Afirmar
é enganar-se na porta.
Pensar
é limitar. Raciocinar é excluir. Há muito que é bom pensar,
porque há muito que é bom limitar e excluir.
[...]
Substitui-te
sempre a ti próprio. Tu não és bastante para ti. Sê sempre
imprevenido [?] por ti próprio. Acontece-te perante ti próprio. Que
as tuas sensações sejam meros acasos, aventuras que te acontecem.
Deves ser um universo sem leis para poderes ser superior.
São
estes os princípios essenciais do sensacionismo. [...]
Faz
de tua alma uma metafísica, uma ética e uma estética. Substitui-te
a Deus indecorosamente. É a única atitude realmente religiosa.
(Deus está em toda a parte excepto em si próprio).
Faz
do teu ser uma religião ateísta; das tuas sensações um rito e um
culto. […]
1916?
Páginas
Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa
Adenda
Orfeu de Monteverdi.
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