O Decálogo e o XIº mandamento

Frank Giroud com a colaboração de dez dos melhores artistas de banda desenhada imaginou uma interessante intriga (a série cultural o Decálogo), construída à volta da história misteriosa de um livro que é urgente conhecer e dar a conhecer. Ricamente ilustrada, esta obra com o nome enigmático de Nahik e de que apenas um único exemplar se guardou ao longo dos tempos, tinha por vocação transmitir as últimas vontades do profeta Maomé sob a forma de dez mandamentos.

Trata-se, explica Giroud, de um "...decálogo sincrético, misturando princípios dos judeus, dos cristãos e dos muçulmanos; a proposta não é absurda na medida em que o próprio Maomé pretendia a aproximação das "três religiões do livro". É verdade que a sua posição foi variando, indo da mais alargada tolerância até à repressão mais feroz. Mas é a minha costela humanista que me faz preferir nele (Maomé) o lado mais aberto e mais universal."

Mas a organização do livro não tinha apenas por finalidade ilustrar um determinado projecto histórico e religioso que a actualidade torna cada vez mais necessário. Nahik é também a referência e o motor da permanente construção de um "fresco humano" que nos permite ver numerosas personagens, épocas e civilizações múltiplas que, ao revelarem-se (será que não devia dizer desvelarem-se?), nos permitem descobrir as suas origens profundas e os laços que as unem para além dos tempos e muito para além dos espaços.

A saga daquele livro, Nahik, completa-se quando Giroud decidiu acrescentar-lhe um capítulo suplementar que ilustra e explicita um mandamento inédito:  "Tu partirás em paz contigo mesmo". Este capítulo começa com o reaparecimento daquele livro no Império Otomano há cerca de um século, onde aconteceu o primeiro genocídio da era contemporânea, perpetrado contra os Arménios pelos nacionalistas turcos.

À beira da sua morte, um cidadão arménio que tinha escapado ao grande massacre, encarrega o bibliófilo Georges d´Apreval de fazer uma alargada e aturada investigação para reencontrar o livro e, a partir da sua leitura compreender a génese e razão de ser do massacre a que tinha milagrosamente escapado.

Foi este o mote para se iniciar um périplo, imenso, onde a tecnologia mais moderna se cruza com passado mais longínquo: mistura os desenhos dos documentos dos manuscritos e dos escritos, os correios e as mensagens electrónicos, as fotografias, as gravuras, as pinturas, todos esses e aqueles leves e insustentáveis traços que nos ligam à nossa história e à nossa existência humana (aquilo que, vulgarmente, se chama de social). O ponto de partida é que todos e quaisquer objectos falam e falam do íntimo de cada um que os construiu, que os viu, que os criou, que os utilizou, que os guardou, que lhes deu nome e que os amou, que os destruiu, que os restaurou, que os mostrou e que os escondeu para os guardar e para os mostrar.

O resultado foi que o nível de informação se tornou espantosamente aprofundado e muitas vezes original e a maior parte das vezes muito explícito, deixando antever que se aproxima a era do "documento espectáculo" e de que é necessário refazer o conceito de "temporalidade histórica"

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