Escrever na procura da verdade-nua na beleza das coisas triviais
Passado
que é o tempo sagrado de Páscoa (Páscoa é Passagem), após uns
longuíssimos dias de pausa e já este dia vai a meio e até já o sentido do 25 de Abril 2022 se assoma, estou de regresso à minha necessária escrita quotidiana. Hoje, este meu escrever prima por começar a desvelar segredos que se ocultam
em duas centenárias salas arcanas: uma, impecavelmente arrumada que
guarda um desenho-caravela numa parede; uma outra, desarrumada e com um
ror de livros ainda por ler: uma sala onde um sofá branco é rei e a música é rainha. São duas
salas bem providas de alma e de significados a desbravar e (ambas) com uma centenária janela para a luz natural,
aprecio-lhes muito a harmonia do conjunto físico e espiritual,
harmonia mui perto do sentido oculto da caverna de Platão,
reconheço. Como sair da caverna?, eis uma pergunta clássica a que urge ir dando resposta. Armado de lornhão antigo, é nelas que garimpo
saberes e memórias e é nelas que sinto a presença aurática e
constante de um ser-único-no-mundo: um ser sempre perto
mas demasiado longe, até mesmo inaparente, tão inaparente que só o
seu nome o contém inteiro, juro a pés juntos. Escrevendo aninhado no bem-estar que esse ser me provoca relato caminhadas pelo mundo lá fora - o
corpo é o nosso meio de experiência e de aprendizagem (sim, Karl
Lashley, conheço o significado do termo engrama) -, caminhadas e passeios no jeito de cinzelador de nadas e de recuperador de velhas
fantasias que datam da minha infância: aprecio as flores e
respiro-lhes o perfume, respeito um ondulante carreiro de formigas
trabalhadoras e tolero muito mal os cantos de cigarras preguiçosas, de
mão dada com borboletas coloridas desfaço as nuvens para dar
espaço ao Sol - os
círculos do céu são um gigantesco poema (alô, bela Hipátia!)
ainda por decifrar -
e, atulhado de formas-padrão, estugo o passo de olhos fitos no
horizonte e nenhuma altura me estonteia, caminho sem fadiga e não há
precipício que eu tema na embriaguez de perigo, e até,
pasme-se, até de quando em vez gente mesquinha e tola aturo,
contrariado e fulo e frio - o
que o berço não dá Salamanca não ensina -,
procuro em ziguezagues intermédios, quando fada boa vira a roda do
leme, a verdade-nua na beleza nas coisas triviais, elas são
rascunhos e fios-de-prumo da vida gratuita, alguém sábio um dia me
garantiu que sim. Assim, dia após dia e semana após
semana e mês após mês - qual
caleidoscópio em que os losangos coloridos se reviram criativamente
ora rosas ora violetas -
incorporo serenamente com neurónios activos o élan vital do espírito desse ser-único-no-mundo, que ancorou naquelas duas salas arcanas de luz
inesgotável: duas salas em que a graça e o verismo e a alegoria e a
conceptualização e o silêncio (alô, John Cage!) daquele
ser-único-no-mundo, que é uma misteriosa coisa em si tão débil quão uma haste de papoila vermelha, permanecem sempre expostos
e murados e ocultos na forma anafada (anafada, hum!)
de misteriosos segredos enfeitados de guipuras, segredos que são
as razões da arte e que viajam clandestinos em obras de arte
preservadas ao longo do tempo, de Lascaux a Koons. Pois, pois sim!,
este meu escrever - preferia
não o dizer -
é isso e é mais, é também um caminho sem meta e
sem destino qual peixe a dormir no mar: perco-me, refaço-me,
cresço e mingo em longos haustos depois de (mais
uma outra vez), sob o reflexo pálido-dourado dum
caramanchão de glicínias friorentas paredes meias com uns carvalhos
açoitados pelo vento, ter lido e relido o conto "Bartleby" do sempre arguto Herman Melville, sem espinhas o digo mas com cardos o escrevo, será que a minha consciência também sabe escrever? Jesus!, Maria!, José!, gosto, gosto mesmo da verdade-nua no teu
escrever, é algo muito para além da cultura cretina que ainda
grassa e medra neste teu país ocidental à beira mar plantado, cultura em que a
ética e até a lei continuam a ser escolhos superáveis, que
sina!, adiante. Mas, oh, pá!, Deus me livre e guarde!, acudam que se faz
tarde!, acabei de ver as horas no meu novo relógio fabulástico e
nunca vi o tempo passar tão depressa, oh céus!, hoje só aqui falta um
teu-poeminha-meu, ouvi suspirar, seja ceguinho de gota serena se não
ouvi, ouvi suspirar a minha arredia e inteligente e atenta consciência. Para que nada perturbe a minha consciência e para que
ela não se amofine, aqui lhe deixo de mão beijada um mote maneirinho, este: lá ao longe a serra tem neve ao sol.
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