Abaixo o mistério da poesia


Enquanto houver um homem caído de bruços no passeio

E um sargento que lhe volta o corpo com a ponta do pé

Para ver quem é,

Enquanto o sangue gorgolejar das artérias abertas

E correr pelos interstícios das pedras, pressuroso e vivo como vermelhas minhocas

Despertas;

Enquanto as crianças de olhos lívidos e redondos como luas,

Órfãos de pais e mães,

Andarem acossados pelas ruas

Como matilhas de cães;

Enquanto as aves tiverem de interromper o seu canto

Com o coraçãozinho débil a saltar-lhes do peito fremente,

Num silêncio de espanto

Rasgado pelo grito da sereia estridente;

Enquanto o grande pássaro de fogo e alumínio

Cobrir o mundo com a sombra escaldante das suas asas

Amassando na mesma lama de extermínio

Os ossos dos homens e as traves das suas casas;

Enquanto tudo isso acontecer, e o mais que se não diz por ser verdade,

Enquanto for preciso lutar até ao desespero da agonia,

O poeta escreverá com alcatrão nos muros da cidade: 

abaixo o mistério da poesia.

                                                                                                          António Gedeão (Rómulo de Carvalho)

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