Se nos poemas também viajam segredos...










Gostaria ainda de escrever pausadamente uma história proustiana (história, não estória) de amor que faça disparar sentimentos a quem a leia. Isto mesmo me passou agora pela cabeça, isto mesmo: a ideia de escrever uma daquelas histórias milenares (de ser e não ser), uma história em que dois amantes se vão lentamente descobrindo nos matizes da sua paixão saborosa. O guião? Simples mas bojudo, este: uma história com um ritual de viagens (de ida e de vinda) a um alfoz banhado por um rio, uma história com fintas e obstáculos e pontualidades, mas também história com noites de lua cheia e jantares divertidos com música e rotundas e abraços apertados e conversas francas à luz do pôr do sol e beijos castos e ciúmes e zangas maneirinhas e reconciliações desejadas e malícias e piscar de olhos, também carnais e filosóficas e poéticas, com linhas de horizonte-água na paisagem e saudades e amores perfeitos e brincadeiras de realidade e até cócegas sem excessos e sem receios de passos em falso. Concluí tudo isto, vá lá imaginar-se!, depois de uma conversa de pé de orelha com os meus botões (é como quem diz "depois de uma conversa com as minhas memórias proustianas"). Bem cá no fundo de mim sei que um dia hei-de ainda escrever essa história, e sei porquê: porque sei que nestes pequenos textos (que todos e cada dia escrevo) recupero a inocência com que antigamente eu lia demoradamente as histórias de amor que povoam o meu imaginário. Adiante. Pode lá ser!, só agora, agorinha mesmo, descortinei a história de amor que viaja clandestina do primeiro verso de um poeminha de Alberto Caeiro (um poeta bucólico inventado por Fernando Pessoa): "O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia...". Se nos poemas também viajam segredos, então este primeiro verso esconde (e revela) uma história de amor que Fernando Pessoa viveu, ele há cada surpresa!, o que vem a seguir ao primeiro verso, vem só a seguir, eu o intuo e eu o sei e eu o garanto. Deixe de se comparar ao Alberto Caeiro, disparou divertida a minha consciência crítica, o guião da sua história fui eu que o ditei, e mais não digo. Tinha que ser!, já cá faltava!, suspirei, e recomecei a sorrir.

Adenda

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,

Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia

Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia,

O Tejo tem grandes navios

E navega nele ainda,

Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,

A memória das naus.

O Tejo desce de Espanha

E o Tejo entra no mar em Portugal.

Toda a gente sabe isso.

Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia

E para onde ele vai

E donde ele vem.

E por isso, porque pertence a menos gente,

É mais livre e maior o rio da minha aldeia.

Pelo Tejo vai-se para o Mundo.

Para além do Tejo há a América

E a fortuna daqueles que a encontram.

Ninguém nunca pensou no que há para além

Do rio da minha aldeia.

O rio da minha aldeia não faz pensar em nada

Quem está ao pé dele está só ao pé dele.

7-3-1914

O Guardador de Rebanhos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993).

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