Duas expressões humanas de um estado mental: a palavra e a voz






Há duas expressões humanas de um estado mental - a palavra e a voz. Não há palavras sem voz, mas há voz sem palavras - no grito, no riso, no trauteio - ou, seja, o canto sem palavras. Diferem uma da outra estas duas formas de expressão em que a palavra é, essencialmente, a expressão de um pensamento ou ideia, e a simples voz é a expressão de uma emoção. A voz trémula que afirma, afirma como palavras e nega como voz. A ideia e a emoção desencontram-se onde se juntam. Os animais, que são emotivos mas não pensantes têm voz mas não palavra. De alguns animais, como as formigas e as abelhas, se pode talvez dizer que têm palavra mas não têm voz; e com efeito se entendem e manifestam na sua organização social o que parece ser inteligência. São especulações curiosas, que podiam prolongar muito. Não as queremos prolongar senão até aqui, porque até aqui é que nos servem para o nosso argumento. O mais é a mais.

A prosa, que é predominantemente expressão de ideias, nasce directamente da palavra. O verso, que é predominantemente expressão de emoções, nasce directamente da voz. Por isso os primeiros versos não eram ditos mas cantados. A expressão de uma ideia chamar-se-á propriamente explicação, porque expor uma ideia é explicá-la; a expressão de uma emoção chamar-se-á propriamente ritmo, porque expor uma emoção é tirar-lhe o pensamento sem lhe tirar a expressão, vocalizá-la sem a dizer.

Como o homem é pensante e emotivo ao mesmo tempo, as duas coisas — salvo em casos puramente animais como o grito, ou puramente artificiais como o trauteio — aparecem-nos juntas.

s.d.

Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. (Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes). Lisboa: Livros Horizonte, 1993.

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Adenda..., com memória.

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