É muito difícil entender as coisas que são fáceis, pois não é?















Dizes-me que sobre a recente (e rocambuslesca) lei sobre os apoios sociais - aprovada no Parlamento - o Presidente da Républica (que a apadrinha) e o Primeiro Ministro (que a enjeita por causa de uns tostões (dez reis de mel coado, melhor dito): algo a que não ligou nada quando decretou as 35 horas semanais na função pública que custam milhões!) não estão em desacordo, dizes-me que um e outro estão sintonizados e de acordo, pode lá ser, é facílimo confirmar que o desacordo entre eles é notório, vê-se à vista desarmada, dei comigo a responder à minha consciência crítica. Adiante, continuei, adiante que tu perdeste as estribeiras: haverá alguém com dois olhos na testa que não veja que aqueles dois políticos estão em desacordo no que toca a essa lei que viola a norma-travão orçamental da Constituição? Calma, retorquiu ela, tem mão nesse teu cachoar de espuma e regista que são os olhos que melhor nos explicam que é muito difícil entender as coisas que são fáceis; se duvidas, demora-te neste estudo que explica como Monet brincou com a luz e assim nos fez saber que o que os olhos viam não estava à vista, era tão só uma construção interna que o cérebro fazia. Teimoso, voltei à carga, e desabafei: se bem te entendi o que vemos não é o que vemos, o que vemos é uma pura ilusão do que é, porque as percepções visuais correspondem a objectos exteriores cujas características físicas alteram o estado das nossas retinas e modificam temporariamente os padrões sensoriais dos mapas do sistema visual. Mais ou menos, suspirou, já cá faltavam as tuas ideias, ao menos muda o disco, mas já que o teu conhecimento da obra de Monet é incipiente, recordo-te que Wittgenstein (um filósofo, pois claro) garantiu que "quando olhamos para um filme vemos no ecrã tão só o momento presente": porém, alertou ele, "a leitura filosófica do tempo faz-nos ver o presente e o futuro e ainda fatias de passado". Daí que..., interrompi-a. E ela, espevitada como quem ajusta molhos de carqueja: daí que o Presidente da Républica tenha querido olhar para o presente e para o futuro próximo e agradar às esquerdas unidas (aquela tirada infeliz "É o Direito que serve a política e e não a política que serve o Direito" brada aos céus, alô Maquiavel!, vida minha, num Estado-de-direito-constitucional vale o primado da Constituição, certo?); e daí que o Primeiro Ministro tenha querido olhar para o presente e para o passado recente e, com a sua atitude pensada, tenha querido agradar não só aos mandões de Bruxelas quanto também agradar ao eleitorado flutuante que gosta do rigor orçamental. Só falta dizeres-me que as atitudes de ambos foram previamente decididas e concertadas, alvitrei num sorriso de duplo sentido. Nem mais, trauteou ela com a suave graça feminina costumada, o objectivo de ambos é fazer com tudo possa correr às mil maravilhas (para ambos está bem de ver!), é muito difícil entender as coisas que são fáceis, pois não é? Naquele instante senti-me a viajar num tapete de feiticeira.

Comentários

Enviar um comentário

Mensagens populares