Café e arte e neurociência e filosofia
Há momentos em que memórias enraizadas nos arcanos do espírito (consequência, quicá, de nervos bem atados durante o frágil tempo de gestação) se conjugam e se actualizam misteriosamente. Para aceder a um desses momentos, nada melhor que - com a imagem acima (cópia de uma expressiva obra de Guilia Bernardelli feita com café derramado) em pano de fundo - (i) ler primeiro este estudo, onde (sumariamente) se diz que beber café ajuda ao controlo motor e aumenta níveis de atenção, e, (ii) de seguida, com a ajuda de Fernando Pessoa, olhar tremulamente para a vida.
"Do terraço deste café olho tremulamente para a vida. Pouco vejo dela — a espalhada — nesta sua concentração neste largo nítido e meu. Um marasmo como um começo de bebedeira, elucida-me a alma de coisas. Decorre fora de mim nos passos dos que passam e na fúria regulada de movimentos a vida evidente e unânime. Nesta hora os sentidos estagnaram-me e tudo me parece outra coisa — as minhas sensações um erro confuso e lúcido, abro asas mas não me movo, como um condor suposto. Homem de ideais que sou, quem sabe se a minha maior aspiração não é realmente não passar de ocupar este lugar a esta mesa deste café? Tudo é vão, como mexer em cinzas, vago como o momento em que ainda não é antemanhã. E a luz brota tão serenamente e perfeitamente nas coisas, doura-as tão de realidade sorridente e triste! Todo o mistério do mundo desce até ante meus olhos se esculpir em banalidade e rua. Ah, como as coisas quotidianas roçam mistérios por nós! Como à superfície, que a luz toca, desta vida complexa de humana, a Hora, sorriso incerto, sobe aos lábios do Mistério! Que moderno que tudo isto soa! E, no fundo tão antigo, tão oculto, tão tendo outro sentido que aquele que luze em tudo isto!"
Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.I. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.
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