O mistério é o fundamento existencial e divino da beleza
Ainda se recorda de em tempos lhe ter garantido que nas obras de arte viajam passageiros clandestinos? Ora aqui está uma pergunta que traz água no bico, dei comigo a pensar ao ouvir a voz que dia sim dia sim me acorda pela manhã. Respondi-lhe: bom dia para si também, claro que sim, recordo, e tanto o recordo que até sei que a imagem que projectou na parede branca do meu quarto com janelas guilhotina é de Christiane Caroline Bommer pintada por Caspar David Friedrich, conheço um avatar da Christiane, tal e qual, uma avatar chapadinho. Olha-me este, suspirou a voz, olha-me este a armar-se ao pingarelho, tu queres ver que dormiu com os pés de fora, e: essa sua certeza livresca deixa-me de cara à banda. Uma voz tem cara? Pode lá ser!, desabafei com os meus botões. E ela continuou: acaso não lhe ocorre que até no ser menos vivo existe um momento de aparência desde que seja essencialmente belo e que tal acontece com as obras de arte? Fiquei-me. E ela: em toda a obra de arte está presente aquela aparência que permanece, seja, a aparência é uma zona de proximidade e demarcação em relação à vida. Não percebo, retorqui. Surpresa minha nenhuma, trauteou. Saiba que a beleza não é, como afirmam uns filosofemas banais, em si mesma aparência, a beleza não é fenómeno e nem uma capa para uma coisa qualquer, mas é totalmente essência, ainda que uma essência que só permanece igual a si mesma sob a capa desse véu que a encobre, a beleza é a verdade tornada visível. Atarantado, e sem saber o que dizer lá arrisquei: acaba de me explicar que a beleza intemporal é uma passageira clandestina que viaja que viaja nas obras de arte? Interessante a sua pergunta, respondeu, a sua pergunta aproxima-se do fundamento da antiquíssima intuição de que, ao ser desvelado, o que estava escondido se transforma, de que só permanece igual "igual a si próprio" sob a sua capa, a ideia do desvelamento transforma-se na impossibilidade do desvelamento. Charadas e mistérios seus, ripostei, estou a tirar água à nora e sem água nos alcatruzes. Fez-me sorrir, exclamou divertida, o mistério (que não as charadas) é o fundamento existencial e divino da beleza, tenha um bom dia, gostei muito da sua iluminação profana. Quando acordei, prometi-me: vou de carreirinha saber o que é uma iluminação profana, será uma iluminação profana o modo próprio de a revelação dissolver mistérios?
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