Pode lá ser, uma alegoria certeira, diria a minha consciência crítica

Preocupado e apreensivo e curioso, matutava eu: (i) os dados relativos ao passado mês de Janeiro no combate à pandemia Covid-19, em Portugal, são aterradores; (ii) tal facto desencadeia uma pergunta simples: porquê?; (iii) sei que encarar esta pergunta é dar de caras com uma nova ciência: a inferência causal; (iiii) a inferência causal postula que o cérebro é a ferramenta mais avançada alguma vez criada para dominar causas e efeitos; (iiiii) na minha mente baila uma frase de Virgílio (29 AEC): "Feliz o que conseguiu compreender a causa das coisas"; (iiiiii) são as explicações causais, não os factos evidentes, que constituem o grosso do conhecimento; (iiiiiii) é desnecessário perguntar pelas causas das coisas a não ser que se possam imaginar as suas consequências. Eis senão quando, ao folhear a "República" de Platão, me deparei com a "Alegoria do navio", e com um Sócrates sisudo a dialogar comigo, assim...

Sócrates – Percebo que te divertes à grande por me ver às voltas com uma questão tão árdua; mas ouve a parábola e te divertirás ainda mais com a pobreza de minha imaginação. É tão ruim o trato que os homens mais judiciosos recebem de suas cidades que nenhuma outra criatura sofre coisa semelhante; por isso, a fim de fazer-lhes a defesa necessito recorrer à ficção, compondo uma figura com muitos elementos diversos, como os pintores ao pintar os fabulosos cervos-bodes e outros seres da mesma espécie. Imagina, pois, que num navio ou numa frota existe um capitão mais corpulento e robusto que os seus comandados, mas um tanto surdo e curto de vista, também não muito forte no que tange aos conhecimentos náuticos. Os marinheiros estão em disputa sobre o governo do navio, convencido cada qual de que tem direito a assumir o leme, sem jamais ter aprendido a arte de timoneiro nem poder indicar quem foi seu mestre ou a ocasião em que estudou; muito ao contrário, asseveram que isso não é matéria de estudo e, o que mais é, estão dispostos a fazer em pedaços quem quer que os contradiga. Esses sujeitos rodeiam o comandante, instando com ele e empenhando-se para por todos os meios para que lhes entregue o timão; e sucede que, não logrando persuadi-lo e vendo que outros lhes são preferidos, dão morte a estes e os lançam pela borda, embotam os sentidos do honrado capitão com mandrágora, vinho ou qualquer coisa e se põem a mandar no navio apoderando-se de tudo que nele existe. E assim, bebendo e banqueteando-se, prosseguem a viagem da maneira que seria de esperar num caso desses. Àquele que toma o seu partido e os ajuda a apoderar-se do comando pela persuasão ou pela força chamam-no homem do mar, bom piloto e entendido em náutica, ao mesmo tempo que tacham de inútil ao que não procede assim; e tampouco entendem que o bom piloto deve preocupar-se com o ano, a estação, o céu, os astros, os ventos e tudo mais que se relaciona com a arte se pretende realmente qualificar-se para a direção de um navio – e, estando verdadeiramente qualificado, ele é quem tem dirigi-lo, queiram os outros ou não. Nunca encaram a sério, como parte de sua profissão, essa possibilidade de unir na mesma pessoa a autoridade com a arte de marear. Ao suceder tais coisas num navio, não crês que o verdadeiro piloto será chamado um visionário, um charlatão e um inútil pelos marinheiros assim amotinados? 

Adimanto – Ah! Sem dúvida.

Sócrates – E por certo não precisas ouvir a interpretação da alegoria, que descreve o verdadeiro filósofo em sua relação com a cidade; pois já a entendeste muito bem.

Adimanto – Sim, claro.

Sócrates – E se apresentasses agora esta parábola àquele cavalheiro que se admirava de ver que os filósofos não recebiam nenhuma honra em suas cidades? Explica-lha e trata de convencê-lo de que seria muito mais extraordinário se a recebessem.

Adimanto – Assim farei.

Sócrates – Dize-lhe que tem toda a razão ao considerar inúteis para o resto da humanidade os melhores cultores da filosofia; mas não te esqueças de acrescentar que a culpa dessa inutilidade cabe aos que não querem servir-se deles, e não a eles próprios. Os pilotos não devem suplicar aos marinheiros que se deixem comandar por eles, pois essa não é a ordem natural da coisas; nem tampouco devem “os sábios pedir à porta dos ricos”… o engenhoso autor deste conceito não fez mais do que mentir… mas a verdade é que quando um homem está doente, seja rico ou pobre, à porta do médico tem de ir bater, e quem necessita ser governado à de quem possa governa-lo; nem o governante que para alguma coisa sirva pedirá aos governados que se deixem governar. Não errarás, por outro lado, se comparares os que atualmente governam com os marinheiros de que falávamos há pouco, e aos que estes chamavam inúteis e papalvos, com os verdadeiros pilotos.

Platão. A República. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011, pp. 243-245.

Adenda 1..., com memória.

Adenda 2...., ora toma e embrulha: uma chapada de luva branca, gosto!

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