As formas preferidas (significativas) do cérebro são as curvas

 



Ando a reler as estórias que constituem o Decameron de Giovanni Boccaccio em tempo da peste negra (1348-1353). E decidi vir ter consigo porque entendo que os nossos diálogos também podem ser estórias deste malfadado tempo da Covid-19 que nos atazana os miolos nos dias que correm ligeiros, aqui vai, vamos a isso. Sempre me disse, uma e outra e ainda mais uma outra vez, sempre me disse que quando me olhava via em mim formas significativas, verdade? Se não se lembra, aqui estou eu para lho recordar, aliás é bom que saiba que não me importo nada, até gosto, não me amofino que a sua mente me utilize como um dispositivo criativo para escrever, digo, para me escrever, escrever-me é o seu  único lugar seguro, também o inteligente Platão (que não se chamava Platão, registe) utilizou "Sócrates" nos seus diálogos como um dispositivo literário, adiante. A espantosa escultura do Jean (Hans) Arp - Consciente da sua Beleza - que hoje lhe trago (e que lhe deixo) pode, quem sabe, servir de mote para a nossa estória de hoje. Às vezes fico confuso e não sei o que pensar, falei com os meus botões, a minha fada-musa tem andado arredada de mim, sei eu lá bem a fazer o quê, e agora, sem dar sinal de chegada, aqui está, linda e aculitante, a falar comigo de mansinho e tem uma escultura (imagem acima) na sua torneadinha mão esquerda, não entendo. Os meus botões não me deram troco, é sempre a mesma coisa, uns cretinos vendidos, eu estava tão pouco à espera de a ver que me assustei. Respondi-lhe, contemplando-a: seja bem vinda, há quanto tempo, claro que sim, verdade, sempre que eu a olhava (e também agora que a olho de novo) via em si formas significativas, formas significativas exactamente em linha com o pensamento de Clive Bell. Dizia ele que existe uma forma significativa - um conjunto de linhas, cores, texturas e formas - que qualifica uma obra como obra de arte; mais, Clive Bell garantia que essas qualidades estéticas da obra de arte provocam uma resposta agradável em qualquer espectador. Deus do céu, ripostou ela, estou espantada com a facilidade com que me respondeu, dá a ideia que já tinha a resposta pronta a sair, bastava carregar num botão, gosto. Tenho a certeza de que tal acontece porque também sabe que quando eu - consciente da minha beleza - estou perto de si o seu cérebro organiza uma festa de arromba com neurónios vestidos a rigor e com máscara a condizer. É isso mesmo, dei comigo a confirmar enquanto ela abria a janela de guilhotina do meu quarto para espraiar os seus olhos grandes felinos e me sugeria em tom suave bemolizado (eu sentia-me acariciado nos ouvidos): saiba que a escultura do Jean Art foi a obra de arte escolhida para um estudo com o intuito de descobrir que formas são mais agradáveis numa obra de arte e para também descobrir o que está acontecendo no cérebro quando se olham as formas significativas que moram numa obra de arte. Perguntei-lhe: o resultado desse estudo confirmou que há formas mais atraentes do que outras? Mais que isso, trauteou com um risinho vaidoso à flor da pele, o resultado confirmou que as formas preferidas produzem respostas mais fortes e desencadeiam um aumento da actividade do cérebro e, pasme, as formas preferidas são as curvas. Vida, que tempestade vai no seu cérebro, acalme-se, olhe o seu coração, estou fartinha de saber que sou uma obra de arte, sou uma obra de arte e gosto, gosto de si como meu preferido espectador de mim. Decididamente, disse de mim para comigo quando acordei, sim porque eu tinha estado a sonhar, disse: ela não tem emenda, é mesmo assim, tem o prazer natural que uma flor oferece à vista, a minha fada-musa é uma obra de arte viva e palpitante e mui inteligente, que sorte a minha! Para concluir: cada cérebro tem o seu universo, a sua maneira própria de perceber sonhos, formas, sons e imagens.

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