Em que sentido o nosso corpo é comparável a uma obra de arte?

Menina com ancinho de feno, 1878 por Winslow Homer (1836-1910, United States) | Reproduções De Arte Winslow Homer | WahooArt.com
(mensagem recebida)
Mais que uma vez, meu ainda e para sempre admirador de mim como sou, mais que uma vez lhe tenho dito que nas obras de arte viajam segredos e afectos. Cá estou eu hoje de novo. Parênteses. Gostei que ontem tivesse mostrado quem foi (e o que fez) o P. António Vieira, raios partam a imbecilidade, há dias em que sou levada a pensar que os próprios deuses lutam em vão contra a estupidez e contra a ignorância. Fim de parênteses. Adiante. Estava eu, lampeira, espiolhando o pensamento de Merleau-Ponty, e, sem tem-te nem mas, caiu-me em cima a aguarela (na imagem acima) de Winslow Homer "Menina com ancinho de feno", de 1878, há dias de luz, pois não há? Vida minha, a emoção e o choque foram demasiado, por vias travessas o espanto leva a descobertas de se lhe tirar o chapéu! Recordei de imediato um dito muito célebre de Cézanne: "... a cor é o lugar onde o nosso cérebro e o universo se juntam"; e (Nossa Senhora!) fiquei pasmada, a minha surpresa não tinha limites, soltei uma gargalhada sorrateira muito minha, aninhei nas mãos uma xícara de chá, e, céus, deuses, disse de mim para mim: eu sou o meu corpo, eu sou a minha vida, o meu corpo é um ser expressivo, não há volta a dar. Diga-me lá se aquele corpo não é o meu, se aquela não sou eu de trejeitos tal e qual e tal beleza e dignidade (ui, aquele meu característico requebro de anca, e o casaco a condizer com a saia folhada e com o capuz, tudo nos conformes!), pode lá ser, vida pura, o ancinho de feno é uma réplica da menorá (rimou, apre!), pois não é? Com quem estou eu a falar na aguarela? Com um judeu, sei-o de fonte limpa, incendeio-lhe os sentidos (sou linda e misteriosa, que quer!) e ainda hoje partilho ainda com ele o burburinho de mil vidas já vividas. Adiante. Demorados minutos depois, refeita do susto, o meu coração lá se acalmou, e fui reler devagarinho o que  Merleau-Ponty diz em "O olho e o espírito", diz ele que: "O corpo deve ser comparado, não a um objeto físico, mas a uma obra de arte (...). Um romance, poema, quadro ou obra musical são indivíduos, isto é, seres em que a expressão é indistinguível da coisa expressa, com o seu significado, a que apenas se pode aceder através de contacto directo, ser irradiado sem alteração da sua situação temporal e espacial. É neste sentido que o nosso corpo é comparável a uma obra de arte. É um nexo de significados vividos, e não a lei para um certo número de termos covariantes." Em tempo de pandemia Covid-19, um tempo que não só prova a nossa pequenez quanto nos deixa entregues a uma roleta russa - é só estar atentos às galimatias dos nossos políticos: nunca a política de ilusão chegou tão longe, a anestesia da propaganda oficial mantém uma parte do país adormecido, a prometida salvação que vem da Europa só para depois do fim deste ano (e sem sabermos ainda com que condições), muito tempo para quem tem fome; até lá, temos que viver com o nosso pouco dinheirinho, o resto, o que sobra, são balelas, são filmes medíocres de outros tempos que deram com os burros na água - bem que lhe pergunto em jeito de provocação amorosa: em que sentido o nosso corpo é comparável a uma obra de arte?
Adenda
... com memória e música.

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