Foucault em Wuhan...


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As medidas de confinamento, relativas à epidemia de coronavírus, decididas pelas autoridades chinesas na cidade de Wuhan, capital da provincia de Hubei, em meados do passado mês de Janeiro, foram similares às medidas de quarentena durante as grandes epidemias de peste no Ocidente na idade clássica.
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Pondere-se no sentimento de reclusão de cerca de 11 milhões de habitantes perante medidas (de quarentena) como: bloqueio (por militares e polícias) do aeroporto, das estações de comboios e camionagem, das auto estradas; transportes colectivos parados; interdição de veículos individuais na cidade; todos os habitantes convidados a não sair de casa a não ser em caso de necessidade. Controlar as deslocações era o objectivo principal das medidas de quarentena. (A cidade de Wuhan é um nó de comunicação na China, é uma etapa chave das "novas rotas da seda").
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Em "Viajar e Punir" (1975), Michel Foucault faz da gestão das epidemias de peste no fim do século XVII o modelo para pensar a lógica da quarentena. Assim: "Vejamos, segundo um regulamento de finais do século XVII, as medidas que se deviam tomar quando a peste era declarada numa cidade. Em primeiro lugar, uma repartição espacial estrita: encerramento, obviamente, da cidade e dos arredores, interdição de sair dela, sob pena de morte, eliminação de todos os animais errantes; divisão da cidade em quarteirões distintos, onde se estabelece o poder de um intendente. Cada rua é posta sob a autoridade de um síndico; este vigia-a; se a deixar, será punido com a morte. No dia marcado, é ordenado que todos se fechem em casa: proibição de sair de casa, sob pena de morte. O próprio síndico vai fechar, do exterior, a porta de cada casa; leva a chave e entrega-a ao intendente de quarteirão; este guarda-a até ao fim da quarentena. Todas as famílias deverão ter feito as suas provisões; mas para o vinho e o pão constroem-se, entre a rua e o interior das casas, pequenos canis de madeira, que permitem entregar a ração às pessoas sem que haja comunicação entre os fornecedores e os habitantes; para a carne, peixe e verduras, utilizam-se roldanas e cestas. Se for absolutamente necessário sair de casa, isso deve ser feito por turnos e evitando qualquer encontro."
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O fim desejado do confinamento é conter a epidemia, mas M. Foucault sublinha que a quarentena é também ocasião de um "sonho": o sonho de uma sociedade disciplinar que pretende que o regulamento se aplique até aos ínfimos pormenores da existência: durante a quarentena um indivíduo encontra-se isolado e imobilizado sob o olhar do poder. Foucault opõe esta lógica da individualização da vigilância, fundamento das sociedades disciplinares, àquela que é prevista na gestão de uma outra epidemia, a lepra: lógica de exclusão e confinamento de um grupo para assegurar a pureza do corpo social. Por um lado, o leproso é considerado anónimo num grupo e, por outro lado, o indivíduo, potencial impestado, suscita a atenção dos poderes públicos e torna-se objecto de uma identificação e vigilância minuciosas, e interdição de sair de casa.
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Estes duas lógicas em si não são incompatíveis, considere-se... Enquanto interna mais de um milhão de Ouighours enquanto grupo, a China desenvolve em paralelo tecnologias de controle individualizado que Michel Foucault não poderia imaginar: notação de cidadãos, reconhecimento facial, algoritmos preditivos, seja, mesmo em movimento um indivíduo ocupa um lugar fixo no mundo numérico que sustenta a sociedade digital disciplinar 2.0.: eis uma quarentena virtual que sempre fará as delícias dos regimes autoritários.
Em Portugal (curiosamente com número idêntico de habitantes da cidade de Wuhan), após o conhecimento da epidemia provocada por um novo coronavírus na China (e já com as medidas de confinamento decretadas pelas autoridades chinesas) dizia-se isto "Não há grande probalilidade de um vírus destes chegar a Portugal". Mas não é que chegou?
Assim sendo, é imperativo, nos dias que correm, revisitar Michel Foucault.

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