Criatividade: uma pedra de xisto, uma faca e um baraço de tabafea

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Acordei, eram para aí cinco horas e pico da madrugada (ou coisa e tal), e vi, na parede branca do meu quarto com tecto em madeira antiga, vi (sem saber o que pensar), vi projectadas as duas imagens que acima reproduzo. Amorrinhei em sono desperto e com um sorriso vadio a escapulir-se-me. Das duas uma: ou estava a sonhar ou a minha desaparecida fada estava por perto e não se deixava ver. Segundos passados, e (em voz inconfundível): que lhe dizia eu, meu admirador de mim única, que lhe dizia eu, essa sua ideia de andar a apregoar as diferenças entre o hemisfério direito e o hemisfério esquerdo no cérebro no que toca à criatividade, não tem pernas para andar, é um mito. Alcei a pestana esquerda (eu disse pestana, uhm!) e lá estava ela: cabelo apanhado, um sorriso à flor do rosto, olhos faróis, mãos faladoras em cada gesto, túnica azul com punhos vincados e uma mantinha pintalgada a escorrer-lhe pelos ombros. Olhei-a, enternecido: é linda e frágil e grácil, pois não é? Perguntei-me com os meus pensamentos a adejar em corrupio. Não lhe consegui ver quase nada abaixo dos punhos vincados ainda que me parecesse pelo jeito do corpo que estava de sabrinas e em pontas dos pés; mas, deliciado, recorri ao rol da minha memória proustiana (proustiana, uhm, adiante) e gostei: com vagar à pressa não me proibi de adivinhar tudo. Muito bem, não me engana, disse ela, tenho que recorrer à leitura da sua mente, sei bem que não está a dormir e que só pensa em mim, tenho que responder à pergunta que a sua mente me coloca. Aí tem a resposta. Vamos lá. (Raio de voz de estorninha ela tem, desabafei comigo, sempre a mesma!). Ela, divertida, enquanto sorria (leu pela certa o meu desabafo) esclareceu que um ladrilho, uma corda e uma faca, foram os utensílios correntes e triviais que serviram para fazer um estudo (este), onde cientistas identificaram um padrão específico mental (três redes no cérebro cuja sincronização gera o pensamento criativo): a rede neuronal por defeito, que mora na memória e que tem a ver com a divagação, com a simulação mental e com o pensamento espontâneo (assim tipo uma chuva de ideias); a rede de relevância, a que detecta informação importante para a criatividade; a rede de controle executivo, aquela que leva as pessoas a concentrar-se em ideias úteis para a criatividade e a pôr de lado as que não interessam. Eu era todo ouvidos, mas quebrei o silêncio e desatei a língua, e: então é mesmo verdade que as diferenças entre o hemisfério esquerdo e o hemisfério direito (no cérebro) não são assim tão vincadas? Óbvio que não, meu admirador de mim boa como sou e melhor ainda hei-de ser, a chave está nas conexões que (através de redes) se estabelecem entre ambos os hemisférios. Existem mais conexões num qualquer tempo: ano ou mês ou dia ou hora? Arrisquei perguntar em jeito de quem quer saber. Excelente pergunta, trauteou judiciosa, excelente pergunta mas a resposta não é fácil, seja, o ano são todos, o mês é Fevereiro, o dia é 3 que é a conta que Deus fez; e a hora, bom, a hora até pode ser agora, ui esse seu ar lascivo é como o algodão, não engana. Respirei fundo e disparei à queima roupa: como é que é? Não! Não, não é não, é sim, retorquiu ela bamboleante. Escusado será dizer que a minha manta branca de lã de ovelha merina já tinha tomado partido, o costume, foi ter com ela, porque é que ainda me admiro?! Acordei... Vá lá saber-se porquê, quando pensei o que iria almoçar, veio-me à cabeça a conversa do sonho catita que acabei de relatar, e decidi: vou arranjar um ladrilho de xisto, aqueço-o em brasas de cepas velhas (de videira), corto com uma faca o baraço da tabafea, asso-a ao comprido, talvez fique melhor com cor torrada; e, depois, numa mesa com uma toalha bonita, com um bom vinho (tipo cabeça de burro) a fazer-se ao piso e com uns legumes variados a acompanhar, a tabafea vai servir de base a um almoço criativo e de estalo... Mau, só me agora me dou conta da sincronização das três redes de que ela (que guicha é!) me falou, a rede da imaginação mental, a rede da informação importante, a rede executiva. Santa Maria, Senhora da Criatividade, uma pedra de xisto, uma faca e um baraço de uma tabafea, sincronizaram-me as três redes no meu cérebro, pode lá ser! Verdade, aconteceu, de certeza: a minha fada é mesmo uma princesa (rimou, ups)!
Adenda
Vale a pena (a propósito de criatividade) ouvir de novo.

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